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Volte cá, Teseu!

Gislaine Marins

O Minotauro, monstro terrível, era vítima de uma maldição. Sua existência era fruto do ódio, seus crimes a consequência de causas concretas com resultados tão previsíveis quanto inevitáveis. Seria plausível pensar que as palavras derradeiras do Minotauro possam ter sido de agradecimento a Teseu, por tê-lo libertado de seu destino funesto. Poderiam ser, mas provavelmente não foram, porque o ódio acostuma à maldade e conforma as mentes a pensamentos perversos.

O Minotauro vivia em um labirinto, mas não percorria os seus caminhos. Se os percorresse, o seu mito seria o da caverna, levando-o da obscuridade para a luz. Ao contrário, a narrativa nos informa que o labirinto fora construído a fim de conter o monstro: é a vitória do engenho sobre o instinto. O Minotauro vivia em uma prisão, nada sabia sobre a complexidade do espaço que habitava.

Mais do que isso, o Minotauro tinha tudo para ser visto como o mal invencível, se não fosse por Teseu, determinado a interromper a série de mortes anunciadas dos jovens atenienses por boca do monstro devorador. Teseu desafia o labirinto a fim de enfrentar o monstro, mas sabe que para sobreviver à sua complexidade é preciso um fio condutor. Duas gerações de jovens atenienses são devoradas pela criatura antes que, com a ajuda de Ariadne, meia-irmã do Minotauro e filha do terrível rei que impôs a pena aos atenienses, Teseu cumpra a sua vitória.

Quando penso nos professores, que fornecem os instrumentos e o fio condutor para abordar a complexidade do mundo, lembro desse mito. Quando penso na coragem de Teseu e de tantos jovens que ousam sonhar um mundo melhor, lembro desse mito. Quando penso em governantes cruéis e egoístas, capazes de desencadearem o ódio e de usá-lo para atingir os seus inimigos, lembro desse mito. Quando penso em pessoas perdidas, devoradas pelo ódio inesgotável e inexplicável, lembro desse mito. Quando penso nos efeitos do engenho humano, formidável na construção de estruturas e incapaz de resgatar monstros dos seus enredos insaciáveis, lembro desse mito.

Quando imagino a morte do Minotauro, uma das hipóteses é a que ele tenha experimentado, pela primeira vez, a sensação de liberdade de um destino trágico, que tenha vivenciado a morte como libertação de uma prisão que jamais compreendeu. Outra possibilidade é que o seu ódio cego, nutrido pelo sangue dos jovens atenienses, tenha tido lugar pela última vez, como na primeira e em todas as outras, no momento do encontro com o herói, e que a morte não tenha comportado nenhuma redenção. Odiando nasceu, cresceu e morreu, sem ter entendido que sua prisão era um labirinto, sem nenhuma alternativa para a repetição do ritual fatal para a juventude ateniense e essencial para a confirmação de sua condição monstruosa: encontrar jovens e devorá-los, até encontrar o próprio fim num confronto de vida ou morte. Nesse caso, as últimas palavras do Minotauro não mudariam em nada a figura cristalizada dentro do labirinto. Ele poderia gritar desesperado como Polifemo ao ser cegado por Ulisses ou lançar uma última inútil ameaça: Volte aqui, Teseu, você não escapa!

Teseu, com a experiência do labirinto, do fio condutor e da espada certeira, encerra a narrativa que todos conhecem: corta a cabeça do monstro e acaba com a maldição.

Complexidades não servem para as pessoas ficarem perdidas, mas para descobrirem os meandros e o valor da própria existência. É passando pelo labirinto que Teseu se torna um herói. É saindo do labirinto que ele cumpre a sua missão, onde os outros jovens falharam. Teseu consegue vencer o labirinto e dar sentido à sua vida. A questão está no processo, em como se passa pelas dificuldades, em como encaramos complexidades. Não há tempo a perder, não podemos perder mais nenhuma geração. O que se espera de nós é que sejamos como Teseu, sem medo do labirinto, que sejamos como Ariadne, confiantes em dar o fio para enfrentar a complexidade do caminho. Não há tempo a perder, porque estamos cercados de minotauros, estamos bastante perdidos no labirinto e o engenheiro que construiu os caminhos tortuosos está a serviço do rei. Volte cá, Teseu, há várias complicações esperando por você.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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