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“A trégua”

Gislaine Marins

“A trégua”

 “A Trégua” é o segundo livro de Primo Levi, dedicado à memória do seu retorno à Itália após a terrível experiência no campo de concentração de Auschwitz. “A Trégua” também é o título da poesia que introduz a narrativa e que explica o próprio sentido da obra.

“Sonhávamos nas noites ferozes”

O Holocausto é importante para o nosso presente e para o nosso futuro porque esta tragédia mostrou ao mundo o que significa genocídio, termo que somente depois da Segunda Guerra Mundial, durante o Processo de Nuremberg, passou a ser reconhecido juridicamente. Com base nesse conceito, vários crimes de guerra, inclusive anteriores ao Holocausto da Segunda Guerra Mundial, foram reconhecidos como genocídio. Entender o significado do Holocausto permite compreender o que ocorre quando sobre um povo recai uma “noite feroz”. Primo Levi, porém, inicia o seu verso lembrando que os prisioneiros do campo de concentração sonhavam.

“Sonhos densos e violentos”

Eram sonhos carregados de medo.

“Sonhados com alma e corpo:”

Sonhos com uma materialidade vital: um impulso impreterível de sobrevivência,

“Retornar; comer; contar”

que somente no espaço, e depois de atravessar o corpo, se transforma em palavras.

“Até que soava breve submisso”

No campo de concentração, a vida dos prisioneiros, submetidos às mais terríveis torturas, humilhações e fadiga, era cadenciada pelos anúncios sonoros, que desumanizavam o viver no tempo. Sirenes eram a prepotente metáfora do controle total sobre qualquer ação dentro do campo. Impunham o tempo do sonho e marcavam o poder sobre a vida e a morte dos prisioneiros em suas exaustivas jornadas.

“O comando da alvorada:”

Era assim, por meio de ordens, de procedimentos sistematicamente repetidos que os militares reforçavam o poder que, aparentemente, era ilimitado e infinito. Era assim, também, que tentavam fragilizar o que os suplícios físicos não tinham subjugado.

“Wstawac”;

Não importa que dessem ordens em uma língua estrangeira, desconhecida para muitos. Às vezes, basta a entoação para perceber o sentido. Às vezes basta o pavor para aprender a língua do inimigo.

“E o coração se partia no peito.”

Partia, mas batia ainda, como continuou batendo e como permitiu que o autor encontrasse a força da memória, a coragem da palavra, a dignidade de reencontrar a sua própria humanidade roubada violentamente.

“Agora reencontramos a casa,”

Cada história sobrevivida na memória e nos livros de história deveria ser tratada como testemunho de sangue para que o mundo buscasse sem hesitações a concórdia, para que evitasse com todos os meios dignos a desumanização das pessoas.

“O nosso ventre está saciado.”

Infelizmente, não aprendemos a lição. E cada geração que fecha os olhos para a violência que não lhe atinge contribui para que a ameaça de um novo Holocausto esteja sempre por perto, perigosamente. A cada dia o horror pode voltar a ocorrer e nunca, como nos dias de hoje, a agressividade a tudo o que nos é alheio, enquanto deveria ser fraterno, atingiu proporções tão impressionantes. A indiferença está na ordem do dia. A morte não nos abala. Os massacres não nos comovem. A desumanização não perturba a nossa ilusão de que tudo não passa de burocracia e simples formalidade.

“Acabamos de contar.”

Mas não acabamos. Os soldados alemães simplesmente cumpriam ordens. É o que Hannah Arendt chamou de banalidade do mal. Essa banalidade ameaça a vida de cada um de nós, todos os dias, quando desprezamos a responsabilidade e cumprimos bovinamente o nosso dever, sem questionar se o que fazemos ou aquilo com o que concordamos é ético ou não.

“Está na hora. Logo ouviremos ainda”

Primo Levi sabia que a experiência do Holocausto não era um fenômeno circunscrito aos campos de concentração, mas delimitava o viver.

“O comando estrangeiro:”

O medo de um novo Holocausto transforma-se em condição da existência, transforma-se na própria possibilidade de pensar o futuro, como uma ameaça perene.

“Wstawac.”

“Levantem-se”, é o significado da ordem que cotidianamente martelavam para desumanizar as vítimas do Holocausto.

Como se chama o mundo de hoje que desumaniza em nome da lei? Como se chamam os comandos para que náufragos não sejam socorridos no mar? Como se chamam as normas que impedem as pessoas de chorarem os seus mortos? Como se chamam os massacres sem justiça? Como se chamam os procedimentos jurídicos usados para destruir povos e retirar os filhos da convivência dos pais? Como se chama o descaso com a natureza que pode determinar a vida e a morte de inteiras populações e o desaparecimentos de ecossistemas? Como se chama um mundo sem trégua?

Não sei. Mas vivo com o temor de ouvir a qualquer momento: “Wstawac”.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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