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As potências do silêncio

Miguel Debiasi

 

O sacerdote e teólogo italiano Romano Guardini (1885-1968) escreve: “as grandes coisas se realizam no silêncio”. As grandes vitórias são ocultas. No silêncio está a potencialidade humana. O encontro com Deus é um evento mais oculto. No mais silencioso e no mais discreto pode tocar e mudar o coração e tornar o espírito mais forte e liberto. O barulho jamais poderá derrotar a palavra poderosa do silêncio.     

Nossa era busca vestir-se da roupagem do barulho, dos ruídos, dos acontecimentos estridentes. Sob forte apelo das redes sociais as pessoas são estimuladas para os movimentos exteriores, o da plateia e da audiência. A voz que comunica é da postagem, da imagem, da exposição. As belas imagens que comunicam encerram fascínio e atraem para seus apriscos milhões de seguidores. O ofício do barulho e dos ruídos é mostrar poder e apresentar-se como um elevador para alcançar o ‘céu’, o estado de plena felicidade e realização. A cada dia, é necessário um novo barulho mais intenso.

Nesse contexto de desejo intenso de comunicação e exposição social, no parecer de muitos especialistas podem produzir ‘escleroses sociais’. Como consequências constatam-se o elevado grau de ansiedade, depressão, irritabilidade, isolamento, distanciamento da vida real, das relações familiares, perda de autocontrole e impulsividade. O uso irrestrito de redes sociais alimenta um modo superficial de viver que não condiz com o real da vida.

É muito raro encontrar jovens e adultos sem conexão digital. Nessa realidade compreende-se que aparelho celular é instrumento indispensável para o trabalho, os estudos, o lazer, o entretenimento e para relações sociais. Em nosso tempo quem não tem celular não está conectado ao mundo, a pessoa vive num deserto. Os instrumentos de comunicação estão para facilitar a vida das pessoas e isto pode demonstrar o mais prodigioso avanço da humanidade: ter acesso aos meios tecnológicos, da informação, da comunicação e de relacionamentos amplos. Este prodigioso avanço nos diz que quanto mais possibilitados de acessos, quanto mais investidos de responsabilidades públicas. Quanto mais acessos às informações, comunicações, relações, quanto mais aplicados em progredir como humanidade.

O nosso tempo é um movimento da relação social, do ‘fazer’ para os acontecimentos exteriores, para a plateia, audiência, sem a clareza do olhar interior, do ter-me elevado enquanto ‘ser’ humano. Sem critérios de relacionamento social caímos na rede dos influenciadores digitais. Todos corremos o risco de sermos capturados por uma vida exterior, mundana, manifesta na vontade de promoção e na ideia de prestígio social. Mas na realidade uns poucos ascendem ao status social e estes dominam a muitos com facilidade pela tagarelice da palavra superficial e vazia.

A afirmação de Romano Guardini que “as potências do silêncio são potências realmente fortes”, nos leva a perguntar: como encontrar-se no silêncio em meio a tantos barulhos e ruídos sociais? Sem a intenção de responder essa pergunta, o bispo francês Augustin Guillerand (1877-1945) já havia afirmado: “a solidão e o silêncio sãos os hospedes da alma”. Este pensamento diz que a alma não se encontra em qualquer lugar. A alma está na solidão e no silêncio, e ela nos leva para estes lugares. Para entrar em estado de solidão e silêncio, não é suficiente parar o movimento dos lábios e dos pensamentos. O silêncio é uma palavra. O silêncio é um pensamento. No silêncio encontra-se todas as palavras e todos os pensamentos.

Dom Augustin Guillerand está dizendo que o ser humano não encontra em nenhum lugar aquilo que não tem em si mesmo. Se o silêncio não habita o homem, a criatura está privada de Deus. Deus encontra-se no silêncio. A onipotência, onipresença e onisciência de Deus é o silêncio. No coração do ser humano há um silêncio inato, porque Deus habita o mais íntimo de cada pessoa. Deus está em silêncio, neste silêncio divino habita a pessoa. A humanidade é filha do silêncio de Deus silencioso, pois os homens são filhos do silêncio amoroso, diz o cardeal guineense Robert Sarah.

Se o coração humano é realmente a morada de Deus, o templo do silêncio, a Sagrada Escritura deve ser ouvida e ruminada em silêncio. Moisés e todos os profetas encontraram Deus ao retirem-se para o silêncio e a solidão do deserto (Êxodo 3). O Filho de Deus ao receber o batismo de João Batista retira-se a solidão do silêncio do deserto (Mateus 4). Ao constituir sua comunidade de Apóstolos, a Igreja, Jesus retira-se às escondidas para o silêncio do deserto (Lucas 6,12-16). No ensinamento da tradição bíblico é preciso sair do barulho, do ruído, do tumulto para encontrar Deus. A solidão do silêncio é o melhor lugar para o ser humano, para encontrar e ouvir o silêncio de Deus.

Para os místicos, a fertilidade do silêncio e da solidão é semelhante à palavra pronunciada quando da criação do mundo (Gênesis 1). Para quem encontra Deus a palavra não é apenas um som; é uma pessoa e uma presença. São João Crisóstomo disse em uma de suas homilias: “aceitamos humildemente o que Deus nos revelou, sem perscrutar curiosamente o Deus nos mantém oculto. Acolhemo-lo no silêncio da fé”.

Se não entramos as profundezas de Deus no barulho, obviamente, também não encontramos o ser humano nessas condições. É no silêncio que entramos as profundezas do sentido de sermos humanos. Em todas as épocas, a experiência do silêncio fez com que homens e mulheres se tornassem modelos de vida, de sabedoria, de realização plena. Hoje guardar-se no silêncio é protestar e reparar danos e destruição provocados por barulhos feitos de autorreferencialidade e tagarelices. Ouvir e silenciar é o caminho para compreender a vida humana, como fez a Virgem Maria (Lucas 2,19).    

           

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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