Você está ouvindo
Tua Rádio
Ao Vivo
12:10:00
No Ponto
14:00:00
 
 

Você sabe com quem está falando?

Gislaine Marins

 

O mundo da meritocracia é lindo, mas derrete quando submetido à prova da realidade. Na vida real, no dia-a-dia, as pessoas não param para ler na sua testa quantos diplomas em Harvard você colecionou, ou quantas línguas você fala, ou ainda qual é o seu lugar na escala oficial das estatísticas sociais. Na rua, vale a lei do boteco: o estereótipo e o lugar-comum, aquele mesmo que as pessoas usam quando conversam com amigos, entre uma risada e um tapinha nas costas, enquanto destroem anos de estudo banalizando uma análise com comentários tão rasos quanto uma poça (não “possa”) d’água. Por exemplo: “ah, mas essa é apenas a sua opinião”.

No mundo real, as pessoas primeiro avaliam pela roupa que você usa, pela cor da sua pele, pelo bairro em que você se encontra, pelo seu país de origem e, somente depois de passar por cima do próprio estereótipo – se puderem –, passam à fase do conhecimento das qualidades e dos defeitos que cada pessoa tem. Na vida de todos os dias, o que vale é falar a língua local. Para quem mora no Brasil, é o português. Aqui na Itália, é o italiano. Você pode falar mais duas ou três línguas, não importa. Na rua, conversando com o cidadão de bem que acha que a Itália é o único país para chamar de seu, ou se fala bem a língua de Dante, ou se abrem as portas do purgatório, que não exclui um possível epílogo com a frase: “volte para o seu país!”, o que equivale, em muitos casos, a “vá para o inferno”.

Já contei mais de uma vez que moro em um lugar maravilhoso, com pessoas vindas de todas as partes do mundo e com muitos italianos, é claro. E que acho tudo isso lindo e divino. Etc. Etc. Etc. Mas tudo na vida tem o seu lado B. Até as coisas legais têm o seu lado negativo. Os cachorros, por exemplo. São lindos! Pena que muitos donos não recolham os excrementos na rua. Crianças: que doçura! Pena que joguem o papel de bala na calçada.

Um dia estava caminhando com o meu filho e uma amiguinha. Falava para a mãe dela como eu me espanto por ver as ruas sujas, como os meus bolsos ao final de um passeio ficam cheios de papéis porque não há cestos de lixo distribuídos suficientemente pelas calçadas. Eis que os nossos filhos começam a comer a merenda na rua – um lugar típico para comer, diga-se de passagem – e eu digo: ai, meu Deus!

A mãe da menina olha para mim e pergunta o que foi, achando que estava acontecendo algo grave. E era mesmo: “olhe, a sua filha deixou o papel cair no chão!”

Claro que, por delicadeza, não disse que a filha dela tinha jogado o papel no chão. Mas o espanto disse tudo. Ela se desculpou e disse que a filha dela nunca fazia isso. Afinal, estávamos acabando de falar de pessoas mal-educadas. E não era o caso delas. Então, por educação, eu disse que acreditava que realmente a filha dela nunca tinha feito isso antes na vida.

A conversa prosseguiu amigável. Mas nem sempre o final é idílico. Outra vez tive um espanto na frente da minha casa e o resultado foi bem diferente. Faço uma premissa: todo mundo me conhece aqui no bairro. Ou melhor: quase todo mundo. A senhora com o cachorro não me conhecia. Ela estava com o pet na coleira, tudo muito civilizado, quando o bichinho parou bem no meio do passeio para fazer as suas necessidades. Aliviado, esticou as patinhas e seguiu em frente, puxando a sua dona, que não fez o menor gesto de preocupação. Perguntei se ela precisava de um lenço de papel.

“Para quê?”

“Para juntar os excrementos.”

“Junte você.” – foi a resposta.

Quando eu disse que deixar excrementos no meio da calçada não era um comportamento civilizado, a dona do cachorro não teve dúvidas em tirar as suas conclusões e partiu para cima de mim aos gritos, chamando-me de imigrante clandestina, fedorenta, e avisando que os “negros” devem voltar para os seus países de origem. Ah, o caso não encerrou sem que ela dissesse que eu devia agradecer por limpar a sujeira do cachorro dela. Para pessoas da minha classe, isso era muito!

Os vizinhos, que me conhecem, saíram para a rua para ver o que estava acontecendo e disseram para eu deixar para lá “a louca”.

Ela não falou do meu italiano, embora eu não perca o sotaque brasileiro. Ela também não conhece a expressão: “você sabe com quem está falando?”, esse modo tão nosso de colocar as pessoas no seu lugar com a arrogância que nos caracteriza. Uma expressão que não usei porque não faz o menor sentido na língua italiana e porque não usaria em português, para poder manter a aparência de pessoa civilizada, enquanto o meu sangue fervia. Acho que sou mais hipócrita do que a dona do cachorro. Mas também sou mais consciente dos meus limites e defeitos. No ranking dos estereótipos, que acabam prevalecendo na selva cotidiana das nossas relações, acabamos a discussão no empate técnico: ela sendo grosseira como imaginamos quando os italianos ficam furiosos e eu sendo irônica como reza a cartilha dos brasileiros que levam tudo no jogo de cintura. A diferença é que talvez ela ache que fez a coisa certa e eu acho que fiz a coisa errada. Há ainda uma outra diferença, e bem maior: é que eu conheço o meu currículo e as minhas responsabilidades. Pelo conceito que ela exprimiu em relação aos imigrantes e aos negros, temo plausivelmente que ela não tenha a menor noção de que além dos estereótipos as pessoas tenham um currículo, uma responsabilidade. E uma dignidade a ser respeitada também.

A conclusão dessa história é a seguinte e não é aquela que se imagina à primeira vista. O que quero dizer é que não basta superar os estereótipos para ser aceito em uma comunidade estrangeira. Não basta saber fazer macarrão para ter sucesso na Itália. Se a meritocracia derrete à prova da realidade, imaginem o que acontece com o currículo quando posto à prova da função. É isso. Eu tiro de letra criança que joga papel no chão e cachorro que tem dona mal-educada. O problema é outro: é competir de igual para igual no mundo cruel da meritocracia, que não olha para a sua estirpe, para a sua pele e para o seu passaporte. Olha apenas o resultado.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

([email protected])

Enviar Correção

Comentários

Newsletter Tua Rádio

Receba gratuitamente o melhor conteúdo da Tua Rádio no seu e-mail e mantenha-se sempre atualizado.

Leia Mais