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Não é lixo!

Vanildo Luiz Zugno

Não é sujeira o que ficou revirado no interior das casas. Não é lixo o que ficou acumulado nos pátios. Não é entulho o que atravanca ruas e avenidas. Não é descarte o que está jogado à beira dos caminhos e estradas.

Cada tábua, cada roupa, cada louça, armário, taça, sapato, touca... Cada chapéu, geladeira, fogão, televisão, penteadeira... Cada telha, cada carro, bicicleta, cabide, chupeta... Cada vida perdida, humana, animal, cada árvore tombada ou partida, são partes de uma memória perdida que nunca mais será esquecida.

Objetos não são só concretos. Eles são abstratos. Eles não tocam apenas o tato, o olfato, a visão, a audição e o paladar. Eles estão presentes em nosso andar, estar e fazem parte do mundo no qual habitamos, nos situamos, labutamos, sofremos e amamos. Cada objeto ausente, é um pedaço de nós que se vai. Dizer que é sujeira, lixo, entulho, descarte é colocar a vida à parte, é não considerar que cada pessoa não é apenas ela, mas um mundo de relações que se constrói dando sentido a cada pessoa, ser vivente e objeto que fazem parte do dia-a-dia imediato ou do longo tempo de vidas vividas e agora truncadas no seu sentido por um fato que corta o presente do passado ao tirar da convivência tudo o que a ele nos ligava.

Quantos anos para adquirir um terreno e nele construir a casa tanto sonhada? Quantos meses de longo financiamento para pagar o carro que a tantos lugares nos conduziu? Quantas prestações mensais para comprar a televisão que dava distração nos momentos de cansaço? E a roupa tanto desejada e agora afogada no lodo ou levada pela correnteza... E as fotos do casamento, do batizado dos filhos, dos netos em algazarra, do passeio na praia, da festa com os amigos, dos animais queridos que também aqui não mais estão.

Dizer que tudo se recupera, não é verdade! O perdido jamais é recuperado. Pode-se construir outra casa, comprar outro carro, outra televisão, roupa, móveis. Mas o que se foi, foi para sempre. Dizer que é hora de olhar para frente, é engano de quem não compreende que o humano não é apenas um possuidor de objetos. O que nos faz humanos, é a capacidade de dar sentido e fazer das pessoais, animais e das coisas, algo que amamos.

Ninguém ressuscita sem passar pela morte. É o que nos ensina a sabedoria cristã. Mas aquilo que morre, não é sujeira, lixo, entulho, descarte. É testemunho da vida que ficou e não pode ser deixado simplesmente à parte. Fazer o necessário luto implica em respeito, cuidado, atenção para não pisar nas memórias das vidas que as produziram.

Se não tem sentido manter o corpo de uma pessoa morta indefinidamente insepulto, também não faz sentido fazer um enterro sem antes velar o corpo. Ao velar o corpo, reverenciamos a vida da pessoa que morreu. Do mesmo modo, ao limpar a casa, o pátio, a rua, a cidade, é importante parar um instante, contemplar o que está à nossa frente e reverenciar as vidas que ficaram simbolizados naqueles objetos dos quais nos despedimos. Só assim nos damos conta do valor das nossas vidas e abrimos a possibilidade de não mais produzir a morte.

Sobre o autor

Vanildo Luiz Zugno

Frade Menor Capuchinho na Província do Rio Grande do Sul. Graduado em Filosofia (UCPEL - Pelotas), Mestre (Université Catholique de Lyon) e Doutor em Teologia (Faculdades EST - São Leopoldo). Professor na ESTEF - Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (Porto Alegre)."

 

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