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Minimundo

Gislaine Marins

 

Moro em um lugar maravilhoso. Roma tem muitos bairros interessantes: costumo dizer que cada bairro é uma cidade com a sua própria cultura. No meu caso, moro em um dos bairros populares, cheio de histórias e particularidades que o tornam único. De fato, algumas das melhores coisas de Roma são os seus bairros populares.

A melhor e mais autêntica culinária romana é essencialmente popular. Campo dei Fiori não é apenas um dos lugares com uma das feiras mais conhecidas da cidade, mas as ruazinhas ao redor da praça possuem autênticos botecos onde beber o vinho local, uma cerveja barata, comer uma genuína pizza romana, um filé de bacalhau frito ou comer uma massa à carbonara, que não é exatamente um prato romano, mas um prato da região, o mais próximo do sabor local.

Atravessamos o rio e já estamos em outro célebre bairro popular, o Trastevere, onde encontramos ainda algumas festas locais e muitas celebridades, especialmente estrangeiras, em busca do mais autêntico espírito local. Não sabem que para encontrar essa alma perdida é preciso ir além do Testaccio e chegar à Garbatella.

No mapa sentimental dos bairros populares de Roma ainda é preciso recordar o Trullo e Val Melaina, onde foi rodado o filme Ladrões de Bicicleta, um clássico do neorrealismo italiano. Seria injusto esquecer Casal Bertone, set de vários filmes da mesma época, assim como o Pigneto, onde rodaram Roma Cidade Aberta, além de ter sido usado como set também por Pasolini.

Descendo toda a via del Pigneto chegamos em outro bairro popular que mostra o melhor de si quando atravessamos os trilhos da Via Casilina em direção do aqueduto Alessandrino. Entre o trânsito intenso da estrada consular, uma referência ao fato de a Casilina ser uma antiga estrada de Roma, e o parque arqueológico, podemos caminhar por pequenas ruas e descobrir o mundo em Torpignattara.

Esta manhã saí de casa e ouvi o sino da igreja chamando para a missa. Caminhei mais um pouco e ouvi alguém declamando versetos do Corão em uma das mesquitas do bairro. Poucos metros adiante ouvi um sininho tocado dentro de um templo budista. Amigos budistas me disseram que há duas correntes de budismo no bairro. Também sei pelos amigos muçulmanos que há diferentes correntes islâmicas nas diferentes mesquitas de Torpignattara. Há templos chineses, mas não sei identificar o tipo de religião que praticam, a China é multicultural e sua comunidade espelha isso. Há festas religiosas organizadas pela comunidade do Bangladesh, não conheço o tipo de ritual praticado, mas conheço a tradição da partilha: uma vez por ano organizam uma festa na rua, muito colorida e musical, e distribuem frutas secas para as pessoas. Meus amigos bengaleses também compartilham a comida no parque quando nos encontramos com nossos filhos.

A comida é essencial nessa viagem pela alma popular de Roma: cada rua tem seu cheiro particular, de acordo com a população predominante no local. No meu bairro há muitas fruteiras étnicas, com escritas em vários alfabetos, que evidenciam a nossa limitação cultural e gastronômica. Há fruteiras internacionais também: aquelas em que as frutas italianas são escritas e pronunciadas em italiano e os produtos estrangeiros são escritos e apresentados em línguas completamente incompreensíveis para mim.

Na minha quadra há uma confeitaria napolitana, um bar chinês, uma casa de câmbio paquistanesa, uma sorveteria cingalesa e um armazém romano. É um minimundo. É um lugar cheio de perfumes e de sabores. Onde saímos da cidade sem sair de Roma caput mundi. É um lugar pequeno, onde meus horizontes se tornaram muito mais amplos.

Esses dias escrevi para uma amiga sobre a experiência da viagem. É isso: descobrir pessoas, suas culturas e suas tradições. Não existem jardins sem pessoas que tenham decido criá-los, não existem monumentos sem pessoas que tenham desejado construí-los, não existem patrimônios sem pessoas que tenham escolhido conservá-los. As pessoas são o que há de mais importante em qualquer lugar. Pessoas viajam, pessoas migram. Para onde quer que vão pessoas podem transformar uma cidade, um bairro, uma rua ou uma quadra em um pequeno mundo, um mundo cheio de estímulos, um mundo maravilhoso. Pessoas são tudo, fazem toda a diferença. É um privilégio morar em um bairro tão interessante, numa cidade tão maravilhosa.

Escrevi isso para compartilhar esse sentimento que podemos descobrir, se quisermos ver a diversidade ao nosso redor. E para dizer que sou grata: grata pela companhia e pelos olhos que me ajudam a enxergar beleza onde muitos veem problemas, choques de cultura e imigração descontrolada.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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