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Eventos

Gislaine Marins

Em 1964 houve um evento. Depois desse evento vieram muitos outros.
Por exemplo, em alguns eventos as pessoas tiveram seus corpos atingidos por objetos contundentes que causaram um estado melhor caracterizável por terminologia médica, capaz de descrever assepticamente o estado das pessoas atingidas. Em certos casos, os efeitos dos eventos podem ser mais especificamente apresentados por médicos legistas, que possuem o arsenal das palavras mortas. A linguagem cotidiana costuma definir tais eventos como tortura e morte, mas vivemos um momento que requer união nacional e amor patriótico. As autoridades assim o querem. Deixemos, portanto, a linguagem cotidiana e falemos dos eventos.


Em outros eventos, algumas pessoas pegaram aviões às pressas porque estavam ansiosas para conhecerem outros países. Algumas ficaram de férias por dez anos, outras por vinte. Algumas nunca mais voltaram, apesar de a pátria ter chamado de volta os seus filhos por estar com muita saudade deles. Na linguagem cotidiana, costumam chamar esses eventos de exílio e descrevem o retorno dessas pessoas como anistia concedida pelo regime militar. Mas vivemos um momento que requer união nacional e amor patriótico. As autoridades assim o querem. Deixemos, portanto, a linguagem cotidiana e falemos dos eventos.


Houve ainda eventos caracterizados por acidentes de trânsito. Algumas das vítimas, considerando as estatísticas rodoviárias, deixaram cartas aos amigos, avisando que isso poderia acontecer e que elas sabiam porque estava acontecendo. A linguagem cotidiana por vezes tratou tais eventos como atentados contra os adversários do regime. Houve inclusive estudos que diferenciaram os vários tipos de eventos, para que os acidentes de trânsito fossem devidamente classificados em eventos e fatalidades. De fato, o momento requer união nacional e amor patriótico. As autoridades desejam que falemos corretamente dos eventos. Deixemos, portanto, a linguagem cotidiana.


Houve, mais tarde, eventos que levaram a ordinárias eleições, como em qualquer nação onde só acontecem eventos. Houve, além disso, um evento absolutamente normal, que geralmente acontece com frequência nos melhores países: políticos e especialistas, reunidos em um grande esforço nacional, produziram um documento que a linguagem cotidiana define como Constituição. O período em que este fato corriqueiro ocorreu é definido pela linguagem cotidiana como redemocratização. Mas vivemos um momento que requer união nacional e amor patriótico. As autoridades pedem o esforço de todos em prol de uma linguagem apropriada para descrever eventos.


Sejamos patriotas e eventualmente precisos. Mostremos que somos necessários à nação do amor.
Os gramáticos ensinam que não existem sinônimos perfeitos. Sigamos, portanto, com as nossas imperfeições. São eventos da vida. Às vezes são eventos fatais. Mas todos os eventos podem ser descritos com as palavras disponíveis a cada momento, ainda que inadequadas.
Para além deles, existe uma palavra preciosa: chama-se verdade. É um termo que não se presta a compromissos, muito menos a eventos. E não morre jamais. Lembremos da verdade, esse termo indispensável, e cuidemos para que não seja sequestrada em um evento qualquer.


P. S. Desculpem, não digamos "sequestrada", mas temporariamente afastada do nosso amável convívio por motivos alheios à sua vontade.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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