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Quando o silêncio grita, o rumor preenche entrelinhas

Gislaine Marins

Entre os últimos filmes a que assisti, três destacam-se pelo uso intencional do rumor: “O mal não existe”, do iraniano Mohammad Rasoulof, “Zona de interesse”, de Jonathan Glazer, e “Ainda estou aqui”, de Walter Salles. O ruído berra quando as coisas não podem ser ditas ou quando foram ditas tantas vezes que já não atordoam as nossas consciências.

O ruído, em geral, é considerado um defeito: é um problema técnico que atrapalha a nossa atenção, distrai os interlocutores quando realizamos uma reunião, perturba quando precisamos realizar uma gravação, interrompe a nossa concentração quando estamos lendo. A qualidade do som, por outro lado, é fundamental na área audiovisual e pode ser determinante para a qualidade de um filme.

Não estou falando do ruído como problema, mas do rumor, um termo mais amplo e ambivalente. O rumor não é apenas um som estranho ao contexto, que desvia a nossa escuta do foco. Rumor também é aquilo que se comenta, mas que nunca é claramente afirmado. É aquilo que ainda não foi oficializado. É tudo aquilo que se sabe, embora seja censurado. É aquilo que permanece no plano de fundo, como as moscas no drama de Sartre.

Como o rumor das fechaduras elétricas que antecede o clique dos botões que acionam as máquinas da morte, na obra de Rasoulof.

Como o ladrar dos cães no silêncio das noites felizes dos algozes, no filme de Glazer.

Como o helicóptero interrompendo um banho de mar, como os comboios militares que passam enquanto o grupo se reúne para fazer uma foto, no longa-metragem de Salles.

O rumor reclama aos brados, quando já não basta apelar à razão. Quando já cansamos de escrever “eu avisei”. Quando já desistimos de dizer: “viu?” Quando já estamos fartos da incoerência dos sorrisos que selam a nossa impotência e calam o nosso desespero. Quando estamos insatisfeitos com a nossa resignação.

Talvez, hoje, aos artistas e aos visionários reste somente o rumor para chatear os acomodados. Para lembrar que os sons desagradáveis aos ouvidos alertam para um mal-estar que é uma entrelinha do nosso próprio tempo. O rumor tira o nosso sossego na cadeira. E no entanto, nada é dito.

O rumor espalha-se ao lado do medo. Difunde-se com as injustiças. Alastra-se entre as desigualdades. É o contraponto da transparência. O rumor é um aviso poderoso, que não encontra palavras para ser definido. É um sintoma: quando o terror assombra a nossa memória e o nosso presente.

O rumor, enfim, é o contrário de tudo o que é afirmado e mentido com palavras, gestos e imagens. O rumor não defende nem acusa, incomoda apenas. Chama em causa o nosso posicionamento: porque um rumor pode ser ignorado ou enfrentado nas suas ambivalências.

Ouço rumores que me assustam, que me instigam, que me surpreendem. Para viver é preciso todos os sentidos, mas também todos os seus desdobramentos. É necessário compreender os vários sinais que nutrem as nossas relações. Afinal, não se pode viver apenas como uma balada, como uma meditação, como um diálogo bem composto, como uma sedução, como um espaço ruidoso. Para viver é preciso enfrentar tudo isso, não raramente tudo ao mesmo tempo.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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