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Para rir dos poetas e morrer no teatro

Gislaine Marins

 

Agora todo mundo tem voz, todo mundo tem opinião. Nem Fernando Pessoa, no poema mais retilíneo, poderia imaginar tal situação. Como o poeta, qualquer cientista hoje se torna motivo de risinho das camareiras. Entretanto, a culpa da condição deplorável na qual se encontra o nível das discussões que acompanhamos publicamente não é delas, nem de qualquer outra pessoa condenada à ignorância. A culpa é dos ponderados.

O ponderado é o tipo de pessoa que pesa cada palavra, avalia as conveniências e calcula os efeitos dos seus atos. Não emerge por afirmações inovadoras ou fundamentadas, pelo rigor de raciocínio ou pela minúcia descritiva: o ponderado se destaca pela capacidade de dizer o que o seu interlocutor quer ouvir. O ponderado conhece a medida exata da dependência para a manutenção do seu lugar social. Machado de Assis atribui ao ponderado a categoria de agregado. É o sujeito cômodo para que os poderosos façam digerir o que é intragável: o ponderado sempre encontra uma forma palatável de apresentar aquilo que é inaceitável. Floreia cada frase com palavras vazias e sedutoras: não há ponderado que não tenha fama de gênio medíocre e pedante disfarçado.

O ponderado apela ao que todos conhecem, dispensa o esforço de compreensão do seu interlocutor. Como um tema parnasiano, o ponderado enfeita qualquer reunião ministerial como um vaso de fina porcelana. É o homem certo para pedir bom senso quando a tragédia se insinua e para buscar verbos ameaçadores quando sabe que o medo afeta os corações ingênuos. O ponderado é o homem capaz de citar uma frase feita como se fosse um clássico e de banalizar os clássicos para receber o sorriso dos iletrados.

O ponderado é o prego na parede, que não tem nenhuma função na história, a não ser enganar o leitor, fazendo-o pensar que deve existir um motivo para o prego estar ali. No meio tempo, cometem-se os maiores assassinatos, o bandido foge e o prego fica na parede como um troféu à nossa incapacidade de distinguir as prioridades das questões irrelevantes. O ponderado é o homem do intervalo, usado para distrair o respeitável público daquilo que realmente conta: o drama. Enredos ruins exigem boas publicidades para manter os espectadores. O show não pode parar.

O show, nesse caso, é uma catástrofe, com milhares de mortes, equivalentes a centenas de aeroplanos e centenas de filmes com enredos catastróficos. Comparável a centenas de navios afundando após o impacto com um iceberg, onde a maioria das vítimas são da terceira classe e os músicos são os últimos a interromper a festa. O ponderado é o artista da recreação, que desvia a nossa sensibilidade para a sua impecável gravata, o adjetivo correto, a fala pausada, como se fosse o profeta do bom futuro. O ponderado sabe que pode ter uma grande carreira entre os que não conhecem os seus truques.

Nessa hora, em que os leitores mais experientes já começam a levantar hipóteses sobre os possíveis desfechos da nossa tragédia, levantam-se os ponderados, pedindo calma à plateia. Irritam as primeiras filas, reservadas aos espectadores com cadeira cativa e olhar penetrante sobre as mazelas que voltam a nos afligir, como se o público não soubesse que a velha história é proposta novamente com jovens atores, muitos dos quais sem papéis anteriores dignos do grande teatro Brasil. Nas arquibancadas, pessoas com bilhetes de cortesia acham deslumbrantes as luzes e o cenário. Dão opinião sobre tudo, como se fossem frequentadores assíduos. Tudo isso lhes é permitido porque o espetáculo é grátis. Diante das câmaras que registram a cena, comem e bebem. Não importa que a encenação não tenha chegado ao fim: estão preocupados em chamar a atenção, na sua insuportável invisibilidade, nem que seja para escandalizar aqueles que procuram a duras penas entender as regras do jogo. Competem até mesmo com os ponderados, condenados a manterem as boas aparências e a serem rebaixados pelo opinionismo galopante que eles mesmos alimentaram.

O teatro Brasil saúda o respeitável público. Os protagonistas são péssimos. O epílogo da peça é tremendo. O ponderado ocupa um espaço lateral sobre o palco. Tenta atrair o público com uma frase de ocasião. A ideia é prolongar o espetáculo por tempo indefinido. Os críticos condenam o autor, os artigos amanhã serão implacáveis. Mas os produtores sabem que a crítica ferina também ajuda a vender ingressos e a aumentar a fama. As arquibancadas têm dificuldade para manter o silêncio cerimonioso. Ligam os celulares. Tiram fotografias. Fazem selfies. Não importa que amanhã outros milhares estejam sob os escombros da nossa indiferença. As camareiras continuam rindo pela eternidade de Fernando Pessoa e de todos os que continuam lendo os grandes poetas.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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