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Medalhas

Gislaine Marins

 

Então, admitamos, todo mundo teve uma mãe que foi empregada doméstica. Todo mundo teve uma avó ou uma tia que foi empregada doméstica. Quem não teve? Os empoderados tiveram. Os jornalistas dos grandes meios de comunicação tiveram. Até o ministro teve. Primeiro destratou as trabalhadoras, depois disse: eu também tive uma avó que foi empregada, e daí? Não dá para brincar?

Não dá, ministro. O país não é uma chacota o ano inteiro. O carnaval está acabando. Não somos o país da piada pronta. Estamos cansados de gracinhas. O riso abunda na boca dos tolos.

Entendemos a operação comunicativa: usam o paralelismo. Os pobres têm mães e avós empregadas domésticas? Nós também tivemos. Vocês, miseráveis, passaram dificuldades na vida? Nós também passamos. Vocês falam mal o português? Nós fazemos publicação cheia de erros para mostrar que errar é humano.

Os que utilizam esses recursos são os mesmos que professam a existência do racismo reverso. São os mesmos que dizem que as pessoas não fracassam por falta de oportunidades, mas por pouco esforço. São os que rejeitam a ideia de que o ponto de partida entre uma criança negra, pobre, de periferia seja diferente da linha de largada de uma criança branca, rica, de bairros nobres. São os que afirmam que a escola pública deve acabar, mas dizem que os saídos da escola pública com esforço extraordinário estão roubando o seu lugar na universidade. São os que falam de humanos direitos em vez de direitos humanos. São os que defendem que não devemos mencionar a consciência negra, mas a consciência humana. São os mesmos que refutam uma linguagem politicamente correta e defendem o direito de ofender, ridicularizar e discriminar. São aqueles que acham que os aeroportos não podem virar rodoviária. São os que querem lugares acessíveis apenas para pessoas selecionadas. São os que acreditam que empresas de smartphone não devem vender versões populares dos seus telefones para garantir que a marca seja exclusiva e cara.

Não basta roubarem a riqueza gerada pelo nosso trabalho, foram ao ataque a todos os símbolos da nossa miséria. E a miséria é a única coisa que nós tínhamos ainda. Apesar de Gilberto Freyre, apesar de toda a conciliação, apesar da nossa condescendência. A miséria é nossa. Não podem roubá-la impunemente. Não podem usurpá-la enquanto jogam as pessoas no desemprego e no desespero. Não podem e não usarão a pobreza como medalhinha. Não enquanto houver vozes para denunciar essa vilania.

Eu acuso: vocês não têm vergonha de transformarem mães e avós em medalhas de uma meritocracia inexistente? Vocês querem negar que o sucesso de vocês não se deve ao esforço de empregadas domésticas no seio da família, mas aos contatos certos, às redes que contam, aos diplomas usados de acordo com as conveniências? Eu acuso: em vez de meritocracia, no nosso país sempre vigorou o jeitinho, o favor, o compadrio, a submissão, o pau-mandado, o capitão-do-mato. Não ascendemos, escalamos por cima de tudo e de todos. Meritocracia é história da carochinha e mãe não é medalhinha: esses exemplos apenas confirmam o pântano em que estamos estagnados. É uma areia movediça que dura há décadas e na qual afundamos sem parar. Somos a confirmação das teses de Gilberto Freyre. Não sabemos contar e superar a nossa história colonial: somos fatalistas. Adaptamo-nos à nossa tragédia. Nossas medalhas são um espelho quebrado, são relógios sem ponteiro. E apesar disso, sabemos que os epílogos sempre podem ser diferentes. Se quiséssemos. Se ao menos quiséssemos.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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