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Acredito no dilúvio, o provocado pela ação humana

Miguel Debiasi

 

Muito já se estudou e se escreveu sobre o dilúvio bíblico. A narrativa do dilúvio planetário está registrada na Bíblia (Gênesis 6-9), Alcorão islâmico, Torá judaico, nos escritos antigos dos assírios, dos persas, dos povos sumérios e babilônicos. Pela narrativa bíblica, quase toda espécie humana foi sucumbida pelo dilúvio, menos a família de Noé (Gênesis 9,18-28). Material teórico não falta para conhecer e pensar sobre a história bíblica do dilúvio, a fim de entendermos a história da humanidade, na qual, somos participantes e responsáveis pelo desenvolvimento do ser humano.

Quando ocorreram as inundações no Estado do Rio Grande do Sul, em setembro de 2023 e final de abril e maio deste ano, muitos fizeram comparações com o dilúvio bíblico. O tamanho do acontecido dá razões para tais interpretações. Até pessoas mais esclarecidas, como sacerdotes, líderes religiosos propagaram em altares e redes sociais que as enchentes seriam castigo de Deus. Obviamente, que essas afirmações são pseudo explicações, mentiras, falsidades.

A história do dilúvio é uma das narrativas mais conhecidas da Bíblia cristã. Essa narrativa descreve que Deus, insatisfeito com a corrupção moral da humanidade, (Gênesis 6,5-8) decidiu lançar sua ira por meio do dilúvio, durante quarenta dias e quarenta noites fez crescer água sobre a terra para destruir toda a vida, exceto Noé e sua família, pessoas justas, as escolhidas para serem salvas por meio da arca (Gênesis 6,9-12). Mas o autor da narrativa desperta nos leitores uma pergunta: qual a interpretação bíblica e científica da história do dilúvio?

Quanto à interpretação bíblica, as pessoas sempre manifestaram crença na intervenção Divina na história da humanidade. O texto da narrativa bíblica apresenta que Deus intervém para punir a humanidade por causa da sua corrupção moral e religiosa. Na compreensão da teologia sacerdotal hebraica-judaica, o dilúvio foi a saída que Deus encontrou para purificar a terra e dar início a uma nova humanidade. A história particular de Noé e de sua família é um exemplo de pessoas justas e de fé obedientes aos ensinamentos de Deus. Na obediência construiu uma arca que salvou a sua descendência, os animais, as aves e a obra do Criador.

Quanto à interpretação científica, os estudos geológicos e paleontológicos já demonstraram que houve, desde o início do mundo, inundações localizadas e não planetárias. Algumas teorias sugerem que a narrativa do dilúvio tenha sido uma adaptação das antigas inundações regionais da Mesopotâmia, usadas como metáfora bíblica teológica para a purificação moral e espiritual da humanidade.

As primeiras páginas Bíblicas cristã apresentam elementos culturais da humanidade antiga e questões de toda ordem, buscando a interação entre a ciência e a religião. O caso do dilúvio insiste nessa interação. Pela Escritura pode-se alcançar o entendimento da cosmologia hebraica antiga, da geologia, bem como, da natureza da própria revelação de Deus. Pelos textos bíblicos tem-se ciência de que os antigos israelitas tinham suas narrativas acerca da aliança com o Senhor, acreditando que na catástrofe nacional há revelação divina e haveria a reconciliação da humanidade com Deus.

O dilúvio bíblico está profundamente enraizado no imaginário religioso e no pensamento cristão. Portanto, parece totalmente fora de cogitação questionar a veracidade da narrativa bíblica, porque entra em questão a veracidade da própria Bíblia, que, como a Palavra de Deus, seria verdadeira em tudo e não importa a temática que anuncia. Por isso, muitos não questionam o estilo da linguagem literária, acreditam que a Bíblia é a Palavra de Deus, e Deus não se desvia da verdade, seja qual for a questão: histórica, científica ou mitológica. Com isso, acreditam que o dilúvio foi global, sendo o juízo divino contra o estado pecaminoso da humanidade.

Hoje não é razoável acreditar que Deus tenha se vingado da humanidade a ponto de querer destruí-la com um dilúvio, sequer há água na terra para tamanha tragédia. Até porque, mesmo que derretessem todas as geleiras polares da Antártica, que abrigam 14 milhões de quilômetros quadrados não seriam insuficientes. Se isso acontecesse acrescentaria ao nível do mar algumas dezenas de metros, o que é muito pouco para cobrir as montanhas mais altas do planeta Terra. Sabiamente, muitos cristãos rejeitam essa hipótese de um dilúvio global.

Por um lado, é louvável o esforço no sentido de conciliar os dados relativos às ciências naturais com a narrativa bíblica, de modo que a ciência e a Bíblia apresentariam a mesma descrição do suposto fenômeno, tem uma série de problemas que aqui não cabe descrevê-los. Por outro lado, é inconcebível pensar que tal evento teria uma gigantesca inundação de alcance cósmico, no qual a própria criação desmorona por inteiro o seu firmamento.

Em suma, poderíamos ficar com a possibilidade real no século XXI da ciência e da fé trabalharem juntas em prol do entendimento da história da humanidade. Nesse caso do dilúvio, a história do dilúvio pode ser interpretada como uma forma de explicar a fé obediente a Deus que torna as pessoas justas como Noé. A contribuição científica estaria nos possibilitando a compreensão da história geológica e paleontológica do planeta Terra. Nessa perspectiva, a narrativa do dilúvio é uma história mitológica fascinante a ponto de exigir da atual geração interpretações religiosas e científicas.

As enchentes que aconteceram no Rio Grande do Sul “são consequências da ação humana, da irresponsabilidade e do descaso com o Meio Ambiente”, afirma o cientista Carlos Nobre, pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e coordenador-geral do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC/INPE). Por outro lado, os órgãos públicos podiam ter tomado medidas preventivas, porque havia informações precisas de que as enchentes poderiam ocorrer no Estado.

As enchentes são um alerta da necessidade de ações urgentes e políticas públicas efetivas para enfrentar os problemas causados pelas mudanças climáticas, assim evitar que tragédias humanitárias ocorram no futuro. No contrário, acredito no dilúvio como fruto da ação humana, do sistema de produção de capital, do desmatamento, da poluição e das atividades produtivas que levam ao desequilíbrio do Meio Ambiente. As enchentes como reação da natureza, são sinais que ninguém poderá conter sua revolta.

Deus não é o responsável pela tragédia das enchentes. Aos olhos da ciência não houve intervenção de Deus, as enchentes são um convite à conversão ecológica, a corrigir ações humanas, sistemas produtivos do agronegócio, industriais, combustíveis fósseis e outros. Acredito que o ser humano tem potencial para provocar um novo dilúvio, os sinais são visíveis, observe.

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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