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Caso encerrado

Gislaine Marins

Um homem obcecado pela paz resolve reunir todos os objetos remanescentes e relacionados à guerra para formar um museu que represente as monstruosidades do passado e sirva de deterrência para o futuro. (O horror e a lembrança como fator de dissuasão, não as armas perfeitamente funcionantes, capazes de matar e destruir, como temos visto nestes dias.)

Esse é um dos enredos do romance “Non luogo a procedere”, do escritor italiano Claudio Magris. Há sete anos o livro era publicado na Itália e talvez não tenha sido suficientemente lido, assim como não foi suficientemente digerida a história da Segunda Guerra Mundial, que há quase oitenta anos é tema de filmes, programas escolares, assunto para conversa, mas permanece uma questão aberta e dilacerante.

É necessário explicar o título do livro, já que o romance não possui tradução em português. Trata-se da expressão “caso encerrado”, usada no jargão jurídico ao final de uma investigação que não revela provas ou indícios para que se justifique o prosseguimento do processo. Dessa forma, o caso é arquivado. E este é o primeiro aspecto que chama a atenção do leitor, antes mesmo de esfolhear as primeiras páginas do livro: o romance é dedicado àquilo que legalmente é irrelevante ou que, por falta de provas, não cabe ser levado ao debate.

O caso, no livro assim como nos dias que vivenciamos hoje, é a guerra: aspectos da guerra que ficam à margem dos tribunais e da história e que só encontram espaço na memória e na literatura. Algumas feridas possuem essa característica: não bastam os arquivos para que possamos fazer um balanço integral das nossas tragédias. À margem dos documentos ficam as impressões, ficam os afetos, ficam as hesitações e os equívocos. Ficam os laços desfeitos, as amizades perdidas, as famílias despedaçadas, os amores naufragados na separação ou na incompreensão. À margem dos documentos arquivados e dos crimes puníveis ficam os comportamentos ambíguos, os compromissos, as conveniências, as traições, a isenção, o medo, a fuga, a adesão a qualquer saída que represente o bem-estar pessoal, a falta de escrúpulos.

Para isso há literatura e memória: nem tudo pode ser resolvido pelos tribunais e pelos registros históricos. A vida é um fenômeno demasiadamente complexo para ser colocado apenas nos limites dos códigos jurídicos ou das páginas de um romance. A vida se nutre de tudo. E não pode ser compreendida somente na cronologia de uma existência, mas puxa o fio que entrelaça uns aos outros, uma família a outra, um sentimento a outro, uma língua a outra, um país a outro, uma época a outra. A memória é uma agulha ética que costura a frio as feridas abertas, as feridas esquecidas, e que a qualquer momento podem levar à gangrena de um membro.

Nesses dias em que a guerra reaflorou, atingindo em cheio as ilusões de paz e as hipocrisias das boas intenções, o primeiro livro que me voltou à mente foi o romance de Magris. Um romance não lido o bastante, provavelmente não traduzido o bastante, sobre uma história que evidentemente não foi compreendida integralmente na sua tragicidade.

A guerra na Ucrânia envolve todo o Atlântico Norte e as nações mais desenvolvidas economicamente no mundo. Não é um conflito entre dois vizinhos, não é um conflito interno, não é uma crise regional. É algo que reabre os piores cenários desde a Segunda Guerra Mundial e que gostaríamos de ter encerrado definitivamente com o fim da Guerra Fria. Isso não aconteceu e devemos a nós mesmos algumas respostas.

Será que estamos estudando bem a história? Será que estamos lendo atentamente os escritores que fizeram um balanço das dores e dos horrores dessa trágica experiência? Será que estamos dotando a diplomacia dos instrumentos adequados para superar as lógicas bélicas? Será que as pessoas estão entendendo que o bem-estar é um conceito que não se traduz apenas no conforto econômico pessoal e na possibilidade de viver indiferente às dinâmicas políticas ao redor do mundo? Será que compreendemos que democracias maduras não podem ter medo de cidadãos informados? Será que percebemos que demagogias têm sido instaladas com o aval de instrumentos típicos da democracia? Será que entendemos que ditaduras estão sendo impostas com os mesmos instrumentos? Será que vemos que a democracia está ameaçada pelo populismo? Será que reconhecemos o valor do bom senso e sabemos desmarcarar as armadilhas das palavras de ordem que encantam e enganam as massas?

Há muito a entender e a recordar nesses dias. Histórias que não vivemos, mas que podemos compreender e analisar. Mas há algo mais, e é por isso que sublinho a importância da literatura: onde a nossa imaginação não alcança, os escritores são esses especialistas capazes de reabrir os casos encerrados, cutucar a memória, tocar as feridas, supor enredos e desfechos, propor soluções. É provável que na crise democrática e bélica que estamos vivenciando haja também uma profunda crise cultural: que esqueceu a importância dos seus escritores, que olvidou o papel dos afetos, da vida de cada um para o epílogo da nossa história coletiva. E isso também produz um efeito. O mais trágico é o risco de que a história se repita, com as mortes, as perseguições, as torturas e a culpa que os nossos antepassados já vivenciaram e que certamente superaram para que não passássemos novamente por tudo.

É tempo de ter coragem para alcançar a paz. É tempo de reavaliar o papel da literatura: para entender sob diferentes prismas que estamos à beira de um abismo outra vez, mas também para dar aos nossos horizontes caminhos que não suspeitávamos. Se do passado conhecemos a morte e os seus efeitos, a paz podemos somente imaginar. Podemos, com ousadia, transformá-la em realidade, passando por trilhas que ninguém jamais traçou e encerrando os casos que os tribunais não podem resolver sem que a sociedade dê passos largos em prol de uma nova humanidade, baseada na ética, no altruísmo e na sincera busca de equidade e respeito recíproco. Daí, sim, poderemos falar de “caso encerrado”: um caminho longo e que, provavelmente, nunca terá fim. Mas pode ser melhorado com o nosso caminhar.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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