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Vamos celebrar o golpe!

Vanildo Luiz Zugno

Diferente de meus amigos democratas que se escalofriaram com a proposta do Presidente de plantão em mandar os quartéis celebrarem o Golpe de 1964, eu, decididamente, decidi seguir a ordem do dia e me agregar à nova velha política da morte da democracia. Vou celebrar, sim, o 31 de março. E o faço com o texto de um poeta que, se vivo, ontem, 27 de março, estaria comemorando 59 anos. Como todos os da minha geração já adivinharam, trata-se de Renato Russo. A poesia, musicada e lançada no álbum “O Descobrimento do Brasil” de 1993, chama-se “Perfeição”. E é tão perfeita a letra que não pode ser em nada emendada na medida em que desvela o caráter profundo deste Brasil tão esquizofrenicamente injusto que, por isso, nunca chega a construir-se como nação pois isso implicaria abolir o caráter escravista de nossa sociedade. Mas, como diz o poeta, mesmo se “a esperança está dispersa”, sabemos que “só a verdade nos liberta”, e, como temos a certeza de que “o amor tem sempre a porta aberta, e vem chegando a primavera, nosso futuro recomeça”.

Com a palavra, o poeta:

PERFEIÇÃO (Renato Russo, 1993)

Vamos celebrar a estupidez humana, a estupidez de todas as nações, o meu país e sua corja de assassinos, covardes, estupradores e ladrões.
Vamos celebrar a estupidez do povo, nossa polícia e televisão.
Vamos celebrar nosso governo e nosso Estado que não é nação.
Celebrar a juventude sem escola, as crianças mortas.

Celebrar nossa desunião.
Vamos celebrar Eros e Thanatos, Persephone e Hades.
Vamos celebrar nossa tristeza.
Vamos celebrar nossa vaidade.

Vamos comemorar como idiotas, a cada fevereiro e feriado, todos os mortos nas estradas, os mortos por falta de hospitais.
Vamos celebrar nossa justiça, a ganância e a difamação.

Vamos celebrar os preconceitos por volta dos analfabetos.
Comemorar a água podre e todos os impostos, queimadas, mentiras e sequestros, nosso castelo de cartas marcadas, o trabalho escravo, nosso pequeno universo, toda hipocrisia e toda ostentação, todo roubo e toda a indiferença.
Vamos celebrar epidemias, e a festa da torcida campeã,

Vamos celebrar a fome, não ter a quem ouvir, não se ter a quem amar.
Vamos alimentar o que é maldade, amos machucar um coração.

Vamos celebrar nossa bandeira, nosso passado de absurdos gloriosos, tudo o que é gratuito e feio, tudo que é normal.

Vamos cantar juntos o Hino Nacional (A lágrima é verdadeira).
Vamos celebrar nossa saudade e comemorar a nossa solidão.

Vamos festejar a inveja, a intolerância e a incompreensão.
Vamos festejar a violência e esquecer a nossa gente que trabalhou honestamente a vida inteira e agora não tem mais direito a nada.
Vamos celebrar a aberração ee toda a nossa falta de bom senso, nosso descaso por educação.

Vamos celebrar o horror de tudo isso com festa, velório e caixão.
Está tudo morto e enterrado agora, já que também podemos celebrar a estupidez de quem cantou esta canção.

Venha, meu coração está com pressa, quando a esperança está dispersa, só a verdade me liberta.
Chega de maldade e ilusão.

Venha, o amor tem sempre a porta aberta, e vem chegando a primavera. Nosso futuro recomeça.
Venha, que o que vem é perfeição!

Sobre o autor

Vanildo Luiz Zugno

Frade Menor Capuchinho na Província do Rio Grande do Sul. Graduado em Filosofia (UCPEL - Pelotas), Mestre (Université Catholique de Lyon) e Doutor em Teologia (Faculdades EST - São Leopoldo). Professor na ESTEF - Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (Porto Alegre)."

 

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