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Um maremoto de objetividade

Gislaine Marins

A vida é uma vírgula na história, mas são as vírgulas que mudam os sentidos das frases. E são de frases que compomos parágrafos, capítulos e narrativas. É como o mar. Enquanto a onda me atrai, não consigo tirar os olhos das gotas que saltam quando a massa de água estoura a poucos metros da raia, anunciando a ressaca.

Já estava tudo pronto para escrever sobre os sessenta anos do artigo "Um mar de objetividade", de Italo Calvino, quando encontrei a minha vírgula, ou a gota que salta na crista da onda. Mas para não perder o trabalho feito e dar maior sentido a esse mar de palavras, aí vai o resumo do artigo que emoldura a minha gotinha.

Basicamente, o que faz Italo Calvino nesse artigo, pouco depois de publicar o romance O cavaleiro inexistente, em 1959, é um balanço da literatura nos primeiros quarenta anos do século XX, ressaltando a subjetividade dos expressionistas e surrealistas, e fazendo uma descrição da geração seguinte, marcada pela objetividade, uma objetividade intensa, descritiva e que acaba arrastando a literatura como uma onda que despersonaliza o indivíduo, embora reflita o momento tecnológico e tecnocrático que se impôs como efeito do pós-guerra. Corria o ano de 1960 e Calvino concluía o artigo com uma nota de esperança, citando dois autores que faziam emergir do mar de objetos e de objetividade uma economia da consciência. Ele referia-se a Carlo Emilio Gadda e a Pier Paolo Pasolini e, naturalmente, o objeto a que se referia era a palavra que representa o mundo. No caso dos autores citados, eram palavras contaminadas pelo vírus da humanidade, que exigem um balanço, não podem permanecer à superfície da matéria.

E eis que o meu olhar é capturado pela gota respingando sobre essa onda que se arrasta há sessenta anos e já virou o tsunami que estamos prestes a enfrentar. Como iremos encarar a ressaca depois que a onda estourar na praia? Estou buscando resposta em Calvino quando ele começa a tocar.

Ele, o músico de rua, se materializa no vagão do trem como se tivesse saído de uma releitura da Idade Média: um menestrel inexistente, como o Cavaleiro de Calvino, que faz uma viagem dentro do vazio da sua armadura para reencontrar os sentidos no presente de uma história antiga. Apresenta-se ao respeitável público de forma tradicional, sem caixa de som, desafiando o rumor das rodas sobre os trilhos com o violão e uma voz que surpreende diante da sua figura frágil e esguia. Anuncia que irá cantar um clássico da música popular italiana. E canta esses versos de Francesco De Gregori:

“O que importa se tem vinte anos e nas dobras da mão

Uma linha que gira

E ele responde sério ‘é minha’

Subentende que é a vida

E o fim da conversa já conheces

Era água corrente tempos atrás

E agora está aqui parada”

Enquanto alguns passageiros ignoram o artista e a música, justificando o momento seguinte em que não darão uma gorjeta pelo espetáculo inesperado, outros levantam para descer na próxima estação, outros ainda verificam nas bolsas como podem retribuir por aquele momento de beleza e de poesia. As portas se abrem.

Entra o chefe da vigilância e basta olhar para transmitir a ordem. O músico anuncia que o show acabou, coloca o violão com uma rapidez de acrobata dentro do estojo e enfia o chapéu na cabeça. Do meu lado, uma senhora abana a cabeça consternada pela cena que não representava nenhum perigo para a incolumidade dos passageiros e eu lembro de Eduardo Galeano quando conta que em um bar de Madri era proibido cantar e isso é sinal de que as pessoas ainda cantam.

Vendo a ordem cumprida, o vigilante desce na estação seguinte, deixando o seu assistente a bordo. Este, também sem dizer palavra, deixa entender que o espetáculo pode recomeçar e o músico prontamente anuncia ao público que vai continuar de onde parou.

E retoma a canção pela metade, certo de que todos tínhamos ficado suspensos pelo fio da história, que continua assim:

“Não conhece temor

O homem que salta sobre vidros e vence e quebra garrafas e ri e sorri

Porque

Ferir-se não é impossível

Morrer é menos ainda”

E, de repente, Italo Calvino, a onda de objetividade, a ressaca, o cavaleiro inexistente, a consciência exigida por essa maré de coisificação do nosso viver, essa onda que se torna tsunami, tudo adquire sentido enquanto uma gota salta na crista da onda, enquanto o músico equilibra-se na efemeridade de uma nota dispersa no ar entre ruídos e silêncios indiferentes, enquanto o homem que salta sobre cacos de vidros na sua canção torna-se cada um de nós diante da nossa precariedade. E sabemos que nada é impossível, mas que depois da ressaca o mar volta a ficar cristalino e o céu é límpido quando o sol torna a brilhar. Sejamos conscientes e destemidos. Como gotas que respingam no mar e artistas que saltam sobre cacos de vidro.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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