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No coração dos trópicos

Gislaine Marins

"O Coração das Trevas" é uma daquelas leituras que não conseguem nos deixar indiferentes. As partes mais conhecidas do romance, até por quem não leu, são as que descrevem a experiência do narrador no coração da África. Aquele coração selvagem, que poderia estar no Congo, em Uganda ou em Angra dos Reis.

O que pouca gente comenta, quando falamos com leitores que praticam o hábito de ler por prazer e não por trabalho, é a cena inicial da narrativa. Toda a narração acontece enquanto os ouvintes se encontram em um barco, navegando ao longo do rio Tâmisa, na Inglaterra. Sem o contraponto entre o rio africano e o rio inglês, poderíamos esquecer que o fluxo das águas é o elemento de ligação entre os dois lugares: o do presente e o da memória. Porém, não se trata apenas de contraste, pois o próprio Tâmisa já fora um rio das trevas, comenta o narrador da história.

O Rio de Janeiro também se presta à comparação. Daria para escrever: "O Coração dos Trópicos", romance de ilusão e ódio. Haveria algo muito diferente em relação ao paralelismo entre o Tâmisa e o rio que atravessa o Congo, ou quem sabe outro país? Não: de fato, o romance de Conrad se prestou para inspirar o filme Apocalypse Now, que se passa no Vietnã. Poderia servir de inspiração para uma live nas redes sociais, por exemplo, mas convém lembrar: sempre tendo como contraponto o rio Tâmisa e seus civilizados navegantes.

Não dá para ler "O Coração das Trevas" sem o contraponto da civilização. A civilização que já foi bárbara.

Hoje vivemos o paradoxo: temos uma barbárie que já foi civilizada. Por isso, o nosso contraponto pode terminar no rio Tâmisa, mas precisa começar no coração das trevas. E como fez Conrad, antes que se pense que toda barbárie é imutável, lembremos que tudo pode mudar. Se Conrad lembra aos companheiros de viagem que ali também, no Tâmisa, já houve barbárie, lembremos hoje que tudo pode ser o contrário do que já foi civilizado.

Corremos para a barbárie a passos largos: já matamos os rios, já deixamos um rastro de morte. Aquela cena do filme Apocalypse Now embalada pela Cavalgada das Valquírias, de Wagner, enquanto vemos na tela a matança de civis a partir de uma esquadrilha de helicópteros não poderia talvez inspirar alguém no futuro? Claro que não. Isso jamais aconteceria. Muito menos em um país que não é a Inglaterra, não é o Congo e nem o Vietnã. Por isso lembrei de Conrad esta semana. Porque escreveu um livro de mentirinha, para pessoas de mentirinha, num tempo de mentirinha. E apesar disso, ou por causa disso, a literatura não morre e a realidade nunca deixa de assombrar.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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