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Muros, muralhas, muretas, multiculturas

Gislaine Marins

Presos. A verdade é que vivemos presos e, quando não nos sentimos aprisionados, erguemos barreiras para aplacar as nossas inseguranças. Ao contrário, ao percebermos que estamos trancados, buscamos fugir desesperadamente: de forma que a nossa vida com frequência fica confinada nessa dicotomia e nós passamos o tempo todo a ir de um lado para o outro dos muros.

Roma é uma cidade com muitos muros. Os próprios moradores estabelecem alguns limites para se identificarem: você mora dentro ou fora dos muros? Dentro é in, fora é out. Dentro é chique, fora é brega. Dentro é central, fora é periférico. Mas seria simplista demais reduzir Roma a essa esquematização. Basta pensar que hoje a Roma que resiste à souvenirização e à sua transformação em pastiche encontra-se nos bairros fora dos muros, onde o turismo devorador ainda não conseguiu homogeneizar as relações interpessoais nem pasteurizar os costumes arraigados, não esterilizou as feiras e ainda não deglutiu completamente o comércio local, com os seus armazéns, as padarias, as livrarias, os pequenos teatros, o cinema de bairro. Quem conhece bem o que acontece fora dos muros de Roma, dificilmente quer ficar preso dentro deles.

Essa Roma tradicional e popular vivencia, no entanto, o turbilhão do encontro com outros mundos. Um fenômeno que faz parte da história da cidade e explica a própria existência dos seus muros, bem como o uso de alguns ditos antigos, como “mamma, li turchi!” (mãe, olha os turcos!): a expressão surge no sul da Itália e sintetiza o pavor diante da invasão turca no século XV na Apúlia, ou segundo outros, na Sicília no século XVIII. Em geral é usada como manifestação de espanto diante de uma presença maciça de estrangeiros, turistas ou imigrantes que sejam.

Fora dos muros, Roma transforma-se também em um universo multicultural que se mistura bem com os perfumes e sabores típicos da cidade. Ao lado das tratorias, encontramos restaurantes de quase todos os lugares do mundo. Esses dias soube que há inclusive um restaurante mongol no meu bairro. Uma vizinha experimentou, gostou e comentou com os amigos. Um conhecido de uma perifieria do outro extremo da cidade, para os lados da antiga Via Aurelia, rebateu em tom espirituoso: aqui não temos essas coisas porque nos falta a estepe!

Seria ótimo se tudo na vida terminasse em uma simples tirada e um jantar amistoso. A realidade é que além dos muros físicos e históricos, nós construímos constantemente muros mentais para nos defendermos dos nossos medos: medo dos outros, medos das críticas, medo da verdade, medo do futuro, medo da nossa própria insegurança. Construímos muros burocráticos que justificam legalmente o nosso refuto seletivo e levantamos muros sobre as nossas pálpebras para não ver que muitos fogem dos seus muros só com a roupa do corpo porque não têm esperança de obter o carimbo que destrua o muro dos controles migratórios. De quem fugimos quando nos trancafiamos dentro dos nossos muros? De quem fugimos quando arriscamos tudo fora dos nossos muros?

Não há quem possa dizer que vive sem muros. Até mesmo a busca de paz impõe as suas barreiras: hoje seria o caso de dizer que há necessidade de uma muralha para conter a violência que ameaça por todos os lados. Desde a violência verbal que já virou o traço distintivo da nossa comunicação cotidiana, até a violência de larga escala, promovida por todas as guerras que constatamos em diferentes latitudes do mundo. Desde a violência da indiferença até a violência estrutural da injustiça e da imperfeição das nossas democracias, incapazes de garantir a todos uma condição mínima de dignidade.

Para constatar tudo isso, precisamos de um muro e de um parapeito: de fato, não conseguimos escapar dos muros nem mesmo para ver que eles existem. Não conseguimos escapar de nós mesmos para que possamos, sem muros, nos reencontrar. De modo que o sem-muro é o seu contrário e a nossa utopia, o nosso sem-lugar, que reconhecemos como o oposto e o ideal que nos anima. Pois se existem tantos muros, é claro que necessariamente deve existir o espaço livre. Para lá seguimos, pulando as cercas, derrubando barreiras, jogando a amarelinha da vida. E às vezes tropeçando nas pedras que nós mesmos tínhamos retirado dos muros destruídos.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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