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É consciência negra, não consciência de melanina

Gislaine Marins

Lamento, mas ter consciência negra é preciso. Mais uma vez é necessário reafirmá-la. Mais uma morte pesa sobre as nossas consciências. Mais uma vez é preciso dizer que a consciência negra não é um direito e uma exclusividade segundo o grau de melanina na pele. Mais uma vez é preciso lembrar que a consciência negra é um dever de todos nós: pretos, brancos, amarelos, azuis, vermelhos, roxos e cor-de-burro-quando-foge. Mais uma vez é preciso denunciar a balela da conciência humana, que desbota as cores e as dores que carregamos na pele, que torna a pele dos negros invisível para gozo dos que afirmam a indiferença como princípio e a isenção como método.

O sangue negro não circula apenas nas nossas veias, mas permeia a nossa história e a nossa tragédia social. Não é preciso ser negro para saber isso. Não é preciso ser negro para defender isso. Não é preciso ser negro para chorar o assassinato brutal de um jovem negro imigrante, que se soma a todos os assassinatos sistemáticos dos afrodescendentes e nos coloca, como nação, entre as mais segregacionistas deste século XXI. Não é preciso ser negro para erguer a voz, e ir às ruas, e subir nos palcos e gritar de mãos dadas com todos os negros e afrodescendentes que essa tragédia precisa acabar.

Não se trata de bondosismo lutar ao lado dos nossos irmãos que possuem um diferente grau de melalina na pele. Não se trata de hipocrisia. Não se trata de ocupar indevidamente um lugar de fala. Trata-se, sim, de reconhecer que o racismo no Brasil é estrutural e enquanto os brancos não tiverem espaço para assumir a causa junto com os negros, em prol da consciência negra, essa chaga histórica permanecerá aberta. Não há dois lados nessa luta: a morte clama por justiça e todos são chamados a responder à própria consciência, sem distinção de cor.

Não gosto de ser tão explícita e gostaria de ter encontrado palavras melhores para dizer essas coisas. Mas hoje não as encontro e as circunstâncias exigem posicionamento urgente. Já escrevi antes sobre o assunto e, particularmente, recebi comentários de colegas e amigos com encorajamento para continuar afirmando o que volto a repetir hoje. É que há muitas pessoas sem melanina suficientemente visível que estão etica e sinceramente na luta contra o racismo, mas são alvo de crítica como se quisessem ocupar um espaço que não lhes pertence. Ser antirracista, caros amigos, não é uma questão de fenótipo: por isso fala-se de consciência negra e não consciência de melanina. A consciência negra está interiorizada naqueles que compreenderam o seu significado, independentemente do percentual de sangue africano que corre nas suas veias. Digo mais: o antirracismo deve ser uma batalha ainda mais convicta daqueles que não possuem ancestralidade africana, mas reconhecem que foram os próprios brancos e criar o racismo e que são os mesmos brancos que podem e devem ajudar a destruí-lo.

A morte de Moïse é inaceitável, como é inaceitável que jovens afrodescendentes sejam humilhados, torturados, injustamente presos e mortos por causa dos preconceitos de cor que estão enraizados na nossa sociedade, no comportamento dos agentes do Estado e nas suas estruturas. No entanto, a morte deste jovem congolês introduz dois elementos novos: a urgência de relacionar historicamente os problemas de imigração e o tráfico de escravos e a necessidade de conhecermos melhor a história da África, do racismo na África, do colonialismo e das lutas pela independência no continente. É um dever, repito. E pertence a todos, sem distinção de convicção, de teses ou de cor.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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