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Diário sobre a beleza: "It's a new dawn"

Gislaine Marins

Os primeiros seis meses escorreram como areia entre os dedos da mão. Busco modos de capturar a beleza em um contexto onde tudo parece eterno porque igual. "Inaugural" torna-se palavra rara, se, com o respiro curto, esperamos que o sol nasça diferente. Diverso pode ser somente o nosso olhar.


O nosso olhar e a vontade. Uma pessoa manda notícias: Porto Alegre tornou-se anônima. A palavra é essa. Um labirinto de ruas com árvores, sim, com asfalto, sim, cada vez mais verticalizada, sim. Cadê as casinhas da Cristóvão Colombo? Viraram prédios. O ginásio Tesourinha? Prédios. Procuro na memória as casas antigas, que talvez ainda existam. Substituo por prédios: imaginar é não sofrer.
Também dizem que há praças e projetos. Acredito.

Acreditar é outra forma de não sofrer. Ouço falar que a cidade é uma caricatura de uma cidade americana qualquer. Se os gaúchos ouvissem isso, ficariam chateados. A realidade, no entando, é que árvores enfileiradas no meio de prédios e asfalto não faz dessa cidade um lugar mais acolhedor.

Pode ser bonito, pode ser funcional, pode apavorar o nosso medo e enganar a nossa hipocrisia, mas não junta o povo na praça, não favorece a conversa amistosa, não prolonga o tempo, essa matéria que perdemos enquanto vamos de um lugar para o outro.


Observo e não encontro com frequência o desejo de criar monumentos. Se a arquitetura é a resposta para a nossa necessidade de aconchego, os monumentos são a expressão artística do nosso sentimento social. Onde estão? Se a psicologia oferece acolhida para as nossas inseguranças, as praças frequentadas oferecem a face humana das nossas cidades.

As praças mais bonitas do mundo parecem um manequim de vitrina, se os seus bancos não são ocupados por gente de carne e osso.
É fácil para as cidades perderem a sua alma. Porque cidades não existem sem a vontade das pessoas. Qual é o nosso desejo atual? Circular? Sair? Chegar em algum lugar? Conseguimos deixar rastros da nossa passagem? Paramos para conversar com desconhecidos? Encontramos os nossos vizinhos?

Frequentamos as lojas do bairro? Sabemos quem são as pessoas? Quem somos? O que representa o nosso sentimento? Fixamos o presente? Queremos criar futuro? Reinventamos os sentidos?


Ou será que inaugural é uma palavra difícil, incômoda, sobrecarregada de passado, assustadora e cansativa? A arte sempre faz estas e muitas outras perguntas. É normal: para não ser o normal. É necessário: para não ser banal. É provocador: para que a gente não perca a vontade. A arte deveria atrapalhar o trânsito, criar desvios obrigatórios, sacudir o horizonte, desacelerar o nosso tempo, invadir a cidade, libertar-se dos museus.


Eu sei, eu sempre quero muito: a vontade, o sonho. A vida. O fim das ruas anônimas. Dos bairros anônimos. Das cidades anônimas. De um mundo feito de sociedades anônimas, consumo, marcas que se repetem e cancelam não aquilo que pode ser, mas o próprio desejo de inaugurar um novo dia, uma nova rua, um novo bairro, uma nova cidade, uma nova vida. Ouço Nina Simone como se escutasse pela primeira vez. Toda vez é assim: arte. 

 

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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