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Alhos, bugalhos, Notre-Dame

Gislaine Marins

Não. O incêndio de Notre-Dame não pode ser comparado ao problema das mudanças climáticas. Não pode ser comparado à tragédia dos imigrantes mortos no Mediterrâneo. Não pode ser comparado à destruição voluntária de monumentos por motivos ideológicos, como vimos em Palmira e em Tombuctu anos atrás. Li nos jornais comparações desse tipo: as pessoas choram por Notre-Dame, mas não lamentam a destruição do meio ambiente. Está errado.

Quando fazemos tais associações de ideias também provocamos um curto-circuito lógico: elas funcionam como figura de linguagem, como comparação, mas não podem ser afirmações a serem levadas ao pé da letra. Alimentar esses paralelismos é não apenas confundir as esferas, mas promover a linguagem seletiva, que no fim das contas acaba por nivelar ao mesmo patamar o que tentamos evidenciar.

O incêndio de Notre-Dame, até prova contrária, é uma tragédia: haverá um evento que causou o fogo e que pode ser chamado de negligência, superficialidade, erro humano (toda tragédia começa com um erro humano - e trágico, pois quem comete o erro não tem consciência das consequências). Dificilmente irá emergir dessa história a mão sórdida de um piromaníaco ou de um terrorista que cometeu o gesto propositalmente.

As mudanças climáticas são efeito do progresso industrial. É o efeito colateral das nossas comodidades. Como todo e qualquer problema, deve ser enfrentado e resolvido. Nada a ver com Notre-Dame.

Os mortos no Mediterrâneo são vítimas da política do ódio, da hostilidade, do egoísmo econômico, do desejo de controlar as próprias populações infundindo o medo diante do estrangeiro e provocando deliberadamente a guerra entre os pobres para melhor governar a nossa pobreza. Divide e impera. Não é uma tragédia, é um plano.

As destruições de Palmira e de Tombuctu foram crimes cometidos para destruir símbolos culturais e fragilizar os povos guardiães das tradições que aqueles lugares representavam. Não podem ser comparadas a Notre-Dame. A destruição da cultura pode ser uma tática de guerra, a exportação da cultura pode ser uma estratégia de domínio, a imposição da cultura pode ser um plano de controle, o uso da cultura pode ser um gesto de manipulação. O incêndio de Notre-Dame não tem nada a ver com isso.

Notre-Dame tem a ver com a nossa capacidade de reconhecer o valor da cultura, de valorizar o papel da beleza, de perceber o significado histórico dos monumentos que tornam a vida de cada lugar e de cada sociedade um fato único e inigualável. Notre-Dame tem a ver com a nossa capacidade de se emocionar diante daquilo que destrói o nosso patrimônio comum. Enquanto pudermos chorar e lamentar a perda de um monumento, seja em Paris, seja na floresta amazônica, onde os cemitérios sagrados dos nossos índios estão sendo destruídos por catástrofes naturais e crimes ecológicos causados pela mão humana, bem, enquanto houver esse tipo de reação, podemos ter esperança no ser humano. Ser humano é ter desenvolvido uma linguagem complexa, simbólica, artística, cultural, é ter memória, é refletir de maneira coerente, estabelecendo relações plausíveis entre os elementos analisados. E é chorar, lamentar e perceber o significado da perda, da morte, bem como a importância da vida, do respeito, da verdade.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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