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Afetividade em tons rubro-negros

Maria Clara Bingemer

            Antes de qualquer coisa, não torço pelo Flamengo.  Toda a minha família é tricolor e meu marido, original da Argentina, torce pelo River Plate. No entanto, meus filhos se autoproclamaram Flamengo desde que abriram os olhos para o mundo.  Influenciados por amigos e colegas foram totalmente seduzidos e conquistados pela nação rubro-negra.

            Em segundo lugar, não sou torcedora assídua e entusiasmada.  Cansa-me um pouco aquela constância de jogos transmitidos todas as semanas em todos os canais de TV, quando já não se sabe mais qual é o campeonato que está na telinha, já que são tantos que somente os especialistas conseguem acompanhar.

            No entanto, não posso negar que me emocionei com a festa rubro-negra que tomou conta do Brasil aquém e além fronteiras com a vitória do Flamengo na final da Copa Libertadores. Vitória sofrida, suada, já não mais acreditada e finalmente acontecida.  Dava para sentir daqui o delírio da torcida nadando na alegria de um campeonato tão desejado. E a festa que cercou os jogadores fez ressoar de novo em minha cidade, deprimida ultimamente por tantos maus sucessos, uma alegria fresca e límpida que se fazia tão necessária.

            Já muito foi estudado e tema de reflexão o alcance antropológico do futebol no imaginário brasileiro.  Realmente, creio não haver sentimento coletivo mais mobilizador em nosso país que essa magia dos pés que correm atrás da bola, que lhes escapa mas às vezes se deixa capturar.  E todos já nos rendemos em maior ou menor grau à vibração que representa uma Copa do Mundo ou um campeonato nacional ou continental como o que vivemos há pouco tempo.

            Escritores como Nelson Rodrigues nos descreveram como “a pátria de chuteiras”. E todos em algum momento e com alguma intensidade já fizemos essa experiência. Era o Brasil em campo.  E jogávamos para ganhar.  E vibrávamos em uníssono com as chuteiras imortais que já nos deram cinco campeonatos mundiais.

´           Por outro lado, estão as questões éticas.  As objeções de consciência diante dos salários milionários dos jogadores; a indignação diante da mídia que ocupa semanas de espaço privilegiado para noticiar como vai a torsão ou a luxação ou o desconforto de algum membro de algum craque.  E isso enquanto há coisas em jogo no resto do país que implicam vidas humanas negligenciadas e não obtêm o mesmo espaço.

            Nada substitui, no entanto, o poder de mover a afetividade que tem esse esporte comunitário, democrático, onde a equipe é mais importante que o indivíduo por muito  genial que seja e onde a torcida se sente incluída em um jogo que é sentido como de todos, embora diretamente jogado por alguns.

            A modernidade nos ensinou que somos seres racionais.  Nossa razão é a mola propulsora de nossa personalidade e nossa vida.  No entanto, quero crer que a afetividade pode mais que a razão, fazendo de nós em verdade seres afetivos que, quando assim o desejam e na medida do possível, racionalizam suas pulsões. E o futebol tem esse poder de mobilizar nossa afetividade.

            Assim aconteceu em Lima na final da Copa Libertadores.  A televisão mostrava rostos de torcedores e eram puro sentimento: angústia, esperança, aflição, nervosismo, todas as emoções em todos os seus matizes passavam diante de nossos olhos captados pelas câmeras.  Ali estavam esquecidos o duro cotidiano, a labuta inclemente e mal remunerada, o cansaço de dias vividos sob pressão e estresse. Ali estavam torcedores que haviam chegado de avião mas também de ônibus, ou a pé, percorrendo às vezes metade de um continente, cruzando fronteiras, para aportar na cadeira comprada desde longe, em meio a um mar de gente, para ver o time jogar sem saber se a vitória iria chegar.

            E finalmente a explosão de alegria com o título que já se acreditava perdido e por isso foi mais saboroso. Os mesmos rostos angustiados de antes agora eram molhados de lágrimas, abertos em sorrisos, celebrados em cantos e gestos. O Brasil ria, cantava e celebrava com os jogadores que após 38 anos o puseram de novo no pódio com a taça na mão.

            Evidentemente não há que ser acrítico e deixar-se anestesiar por uma catarse coletiva que aliena dos problemas que o país atravessa.  Não é permitido repetir a euforia mentirosa do milagre brasileiro dos anos 1970 reforçado pelo tricampeonato obtido em Guadalajara, México.  Naquele momento, o Brasil vivia dias terríveis.  Hoje também vive momentos dolorosos. Porém, há que admitir que há muito nosso povo não experimentava uma alegria coletiva desta dimensão. 

            Não era apenas o Flamengo.  Era o Brasil! Naquele momento, o país se vestiu de rubro-negro e adotou manto sagrado.  E foi bonito.  E foi consolador.  E deu força para voltar ao cotidiano e continuar lutando e sobretudo esperando.  Porque a esperança é mãe da alegria .  E o povo brasileiro tem essa segunda virtude teologal como sua profissão.  Brasileiro profissão esperança. 

Sobre o autor

Maria Clara Bingemer

É professora do departamento de teologia da PUC-Rio e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da mesma universidade. Ela é graduada em Jornalismo, mestre em Teologia e doutora em Teologia Sistemática.

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