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A septuagésima noite: Seatime

Gislaine Marins

E por sorte existe a literatura. E existem as mulheres. São elas que tecem para enganar o tempo de espera, são elas que contam para espantar a morte certeira. Assim chegamos ao septuagésimo dia de conflito no quintal da Europa. Abrimos o jornal: guerra. Ligamos a tv: guerra. Acendemos o computador: guerra. A moldura dessa crônica feroz, como se devêssemos recordar o que deveria estar decorado, cabe às palavras que encantam, às palavras que ninam, às palavras que distraem, às palavras que esperançam o que parece não ter mais jeito. Armam-se de poesia, as mulheres, para que os filhos não embruteçam a alma. Repetem, como se fossem Xerazade diante da morte, palavras para inventar o futuro. Já que o amanhã não poderá ser construído por bombas: se ainda existir, será pela força do diálogo. O devir precisa de palavras e de histórias.

E já se vê que, por sorte, a literatura não é um acúmulo de leituras, não é um arsenal de descrições para as horas amenas, não é um manual de instruções, mas é a própria ferramenta para acionar a nossa capacidade de compreensão e exigir a nossa memória. Para muitas mulheres, é um instrumento intuitivo, uma sabedoria antiga, que ensina a repetir aos filhos, desde a mais tenra idade, as histórias da tradição e do folclore. Não sabem de seu destino de aedo e não imaginam que ao contar estão alimentando a vida.

Os homens sabem bem que as mulheres são guardiãs da literatura e da vida. E que eles são os artífices da guerra e da morte. Um dia um padre me disse: não esqueça de ensinar o seu filho a rezar. Mesmo os sacerdotes sabem que as palavras inesquecíveis, depois que já perdemos todos os conceitos no labirinto das nossas escolhas, são aquelas que ouvimos da boca da mãe, quase num sussurro, antes de dormir.

Nessas horas de guerra, leio que as mães não desistem. Contam, brincam e alimentam os filhos com histórias para enganar o medo, o frio e a fome. Vão prolongando a vida. Vão nutrindo a esperança nos momentos mais escuros. Não posso sentir, mas posso imaginar o que fazem, porque eu também só fui aparelhada para este combate. As palavras são as únicas armas que conheço e das quais disponho.

Lembro, criança, a oração antes de dormir, em voz alta com a minha prima: “Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, se a ti me confiou…”. Todos os dias, de cor, sem entender bem aquilo que dizíamos. Um dia nos olhamos e quase juntas nos perguntamos: “mas quem era Seatime?” Seatime confiou. Não tínhamos resposta, mas tínhamos confiança. E se ele confiou, a gente também confiava.

De dia, como se o mundo tivesse acabado, procurávamos inventar uma história sobre a minha tia no céu. Olhávamos uma nuvem e viámos uma flor que ela tanto gostava. Imaginávamos que, no alto, ela olhava e ficava contente por sermos amigas e por sua filha não ter ficado sozinha. Mas sabíamos que os dias de companhia acabariam quando os adultos decidissem que acabara o luto e escolhessem como seriam os dias depois do fim. A minha prima foi morar com a avó materna e juramos que todos os dias, às três da tarde, iríamos nos encontrar nas palavras, repetindo à distância a mesma oração.

Descumpri inúmeras vezes a promessa, mas não a história. As histórias, as palavras, as recordações permaneceram e a vida ofereceu a oportunidade para o nosso reencontro, cheio de idas e voltas, distância e saudade.

Acredito no fim da guerra. Como Penélope acreditava no retorno de Ulisses. Como Xerazade acreditava que poderia chegar ao fim de mais uma noite e não ser assassinada. Por isso, é importante contar histórias. Por isso, é importante fazer promessas. Por isso, é importante armar-se de palavras para o futuro. Por isso, é absolutamente necessário ouvir as mulheres, embalar os sonhos das crianças e ler. Ler para sobreviver ao horror. E ler para saber que apesar dos relatos trágicos que chegam aos nossos olhos e ouvidos, podemos contruir um mundo melhor e uma paz duradoura. Precisamos de inúmeras palavras para isso, precisamos de centenas de ideias. Engajemo-nos: é a única batalha que vale a pena.

A todas as mães, felicidades pelo seu dia no próximo domingo. E a todos os filhos que já não têm uma mãe: coragem. Não esqueçam as histórias que as mães contam e que vivem para sempre.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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