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Xangai, 2056

Gislaine Marins

 

Antes de começar a escrever este texto, questionei-me se era plausível imaginar que em 2056 ainda estarei viva e em condições de compreender o mundo que virá. Talvez quando este dia chegar, eu esteja arraigada demais a ideias passadistas, que não servem para o futuro imediato e muito menos para tempos mais distantes. Quando este ano chegar, é possível que a memória já tenha me traído, e pode ser que eu leia o que escrevo hoje com estranhamento, sem nem mesmo reconhecer o meu rosto no espelho. O problema é que, além das mudanças hoje irreversíveis e dramáticas causadas por doenças para as quais ainda não temos cura, às vezes mudamos porque nos deixamos levar pelas circunstâncias, abatidos e frustrados diante das dificuldades. Nesse caso, espelhar-se será doloroso pelo remorso ou pela indiferença em relação aos nossos bons propósitos abandonados em algum canto dos nossos sonhos perdidos.

Apesar de todos os riscos, prevaleceu o desejo, essa matéria impalpável que nos impulsiona a caminhar, semear, cultivar, construir e colher frutos. O sonho é o de receber a seguinte carta:

Querida vovó Gigi,

Você sabe que o papel custa uma fortuna. Cedi ao seu pedido apenas porque o papel, apesar do custo ambiental, é o material que usamos para conservar as nossas mais preciosas memórias. Assim tem sido feito há milênios e graças a isso podemos saber o que fizeram todos os nossos ancestrais. Graças a isso as bibliotecas são, hoje, um dos lugares mais valiosos no mundo.

Lembro que você me contava que, quando o meu pai era criança, as pessoas demonstravam a importância que davam umas às outras presenteando-as com joias. Sempre com os olhos no passado, você dizia que isso vinha desde que, na tradição ocidental, o nascimento do Menino Jesus foi narrado, incluindo a adoração dos Reis Magos, que lhe deram ouro, incenso e mirra. Por isso, presentear com perfumes, embora seja algo muito pessoal, também sempre foi considerado precioso.

Mas os tempos mudaram, não é, vovó? Sei que você ficou feliz quando finalmente a proteção ambiental passou a ser a prioridade econômica de muitos países. Meu pai ficou ainda mais feliz, pois esta foi a batalha de toda a sua geração. Quando a Greta foi eleita Secretária-Geral da ONU foi uma ovação. Você já sabe de tudo isso. Agora venhamos a nós.

Aqui está tudo bem. Só lamento que você seja tão resistente a usar os instrumentos que os hologramas nos oferecem. Se aceitasse, poderia mostrar a cidade e você veria que Xangai se transformou em um jardim. Mas sei que você sempre confiou na tecnologia para conservar e não destruir o mundo. Também sei quanto foi difícil para o meu pai passar por essa transição. Não para ele, pessoalmente, mas para a geração dele. Quando meu pai entrou na universidade, o mundo ainda não estava pronto para uma economia desmaterializada, com um nível de industrialização sensivelmente em queda e com a ascensão de carreiras ligadas a cuidados, à análise e ao controle de processos. As pessoas achavam que os robôs iriam roubar o sentido de suas vidas, se lhes roubassem os braços nos campos e nas fábricas. Aos poucos foram entendendo que disseminar a formação universitária permitiria fornecer serviços e produtos de qualidade de forma universalizada para toda a população do planeta. Felizmente, houve um impulso nas profissões médicas e psicológicas. As pessoas finalmente entenderam que estar bem psicologicamente é tão essencial quanto ter uma boa alimentação.

Vovó, estou escrevendo porque no mês que vem vou me formar em biotecnologia e, desta vez, não quero a sua saudade nem o seu holograma: quero a sua presença física aqui. Faça todos os exames, prepare a sua melhor roupa protetiva e venha. Aqui há delícias locais que você precisa experimentar com suas papilas gustativas, como você sempre adorou fazer. O papai virá do Botsuana. Você sabe como ele é: afetivo, mas daquele jeito que parece não estar nem aí para ninguém. Talvez tenha sido a dura aprendizagem de uma juventude passada à distância das pessoas. Mas nenhuma distância apaga os afetos.

Vovó, continue confiante, porque nós também continuamos. E venha sem medo. Já vencemos tantas batalhas! Quantos vírus desvendamos, quantas epidemias superamos! Mas não vamos parar por aqui. Não temos a pretensão de alcançar a eternidade, mas de viver bem, com qualidade, com equidade, e isso significa continuar estudando para vencer os vírus que o desgelo dos pólos liberou depois de milênios presos nas geleiras. Há muito há ser feito e sinto que é um desafio enorme viver no século XXI e ao mesmo tempo enfrentar os desafios dos homens da pré-história. Acho que foram as suas histórias. As histórias criam um laço incrível entre as pessoas.

Saia da sua toca! Um beijo imenso da sua neta

Angelina

Xangai, 2 de junho de 2056.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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