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Isolamento, e agora?

Gislaine Marins

Como é bonito o isolamento, como é virtuoso, como é necessário! Passei toda a semana ensaiando um texto edificante, motivador, enquanto ao meu redor o frio fazia o seu curso para desmentir a primavera, os cabelos do meu filho continuam crescendo despenteados como se fôssemos sobreviventes numa ilha desabitada e o tempo passa freneticamente, encurtando a barra das calças e lembrando que ao final de tudo isso teremos outros corpos, outro peso e outra altura. E provavelmente não isso apenas.

Passei toda a semana pensando naquele fato extraordinário que inaugurou não apenas o direito, mas a luta de classes, quando os plebeus, numa jovem república romana de quinze anos, impuseram o auto-isolamento para os patrícios entenderem com quantos paus se faz uma canoa. Estou falando de acontecimentos ocorridos cerca de quinnhentos anos antes do nascimento de Cristo, quando os romanos tinham jurado nunca mais serem governados por um rei.

Derrubada a monarquia com apoio de todas as camadas da sociedade, os patrícios consolidaram seu poder oligárquico, além de econômico, transformando-se em credores dos plebeus que lutavam para defenderem a cidade. Os novos donos do poder não se importaram em elevar a desigualdade para níveis insuportáveis. Mais do que tudo, não previram as consequências da sua avidez.

Os plebeus, ao contrário, perceberam o logro de que eram vítimas e não hesitaram em expor claramente as suas reivindicações: tinham ajudado a construir uma república e lutavam para defenderem a pátria e não os patrões. Não aceitavam mais que ao final das campanhas militares se encontrassem ainda mais endividados do que no início das guerras, com débitos que se acumulavam junto das famílias patrícias e que os jogavam na servidão e na escravidão temporária. Deram um basta.

Isolaram-se no Monte Sacro. Foi a primeira vez que Roma correu o risco de ser dividida.
A zona, no norte da cidade, encontra-se a cerca de três milhas do centro histórico e é atravessada pelo rio Aniene. Os plebeus atravessaram-no e isolaram-se por cerca de um ano, privando Roma de homens para a luta e para o abastecimento da cidade.
A questão foi resolvida por Menênio Agripa, usando uma poderosa metáfora, segundo a qual houvera um tempo em que o corpo humano não era harmonioso e cada membro precisava trabalhar para suprir as necessidades do estômago. Foi assim que os membros decidiram parar de suar para ele: as mãos não mais levariam o alimento à boca e os dentes não mastigariam para engolir. Porém, à medida que o estômago permanecia insaciado, o corpo inteiro sofria.

Por meio dessa imagem, Agripa conseguiu convencer os plebeus de que o "estômago", ou seja, a classe dos patrícios, não era apenas um peso e dessa forma sedou os ânimos. O líder do protesto, ele mesmo fundador da república, exigiu, contudo, que os plebeus passassem a ter representatividade. Assim surgiu a figura do tribuno, que defendia os interesses da plebe e alcançou-se um acordo não apenas econômico, mas político.

Os protestos que levaram à secessão de Monte Sacro reivindicavam liberdade, uma condição inseparável da economia, visto que o endividamento levava à prisão e à escravidão temporária. Em nome do pleno reconhecimento do seu papel na república, isolaram-se. Roma mostrou a sua fragilidade e a plebe mostrou o seu peso.

Lindo, não é? Mas a história não acaba com um acordo de paz duradouro. Os patrícios não perderam os seus vícios e os plebeus não deixaram de ser explorados. Logo após este episódio, um povo das vizinhanças, os volscos, só foram detidos nos seus intentos de atacar os romanos porque foram detidos por uma enfermidade. Enquanto isso, aproveitando o momento de vantagem, os patrícios trataram de reforçar duas colônias nos arredores, Velletri e Norma, para garantirem o abastecimento e poderem voltar a reclamar seus privilégios nada republicanos.

Apesar disso, os plebeus obtiveram algumas vitórias. No total, utilizaram o isolamento cinco vezes como forma de pressão para atingirem os seus objetivos. Conseguiram  representatividade política, o direito de casamento com membros das famílias patrícias e a possibilidade de aprovarem leis sem depender da sanção dos senadores.

Ao longo da história, outros isolamentos foram usados como forma de protesto, defesa e sobrevivência. Hoje somos chamados a fazer esta escolha, densa de significado, responsabilidades e consequências. Podemos ser apenas figurantes. Podemos ser coadjuvantes ou podemos ser protagonistas dessa história. Um isolamento pode fazer líderes mudarem de ideia, podem bloquear mais do que um vírus. Pode mudar o nosso modo de viver. Nossa revolução silenciosa, dentro das nossas casas, é feita de chinelos, cabelos desalinhados, interação nas redes, economia, desespero, preocupações, dúvidas, escassez. Para muitos irá impor a fome, se a nossa solidariedade e as medidas governamentais forem insuficientes. Será uma dura batalha.

O isolamento dos plebeus deu ao mundo um modelo de direito que evoluiu, mas não foi totalmente abandonado até hoje. O nosso isolamento poderá fornecer um novo modelo de administração pública, de solidariedade humana e de economia. Estejamos prontos, pois um novo mundo vem por aí. Estamos gestando coletivamente este futuro. O bem ou o mal que resultará das nossas ações não será culpa apenas dos governantes, mas também da nossa coragem.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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