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Sobre a arte do salto

Gislaine Marins

Chega a parecer um luxo escrever sobre leitura em um país de analfabetos funcionais. Parece, mas é necessidade. Sem o salto da leitura nunca nos livraremos do veneno da ignorância.

E que salto seria esse? Uma atitude elegante, a ser combinada com vestido de gala? Uma lista por ordem alfabética, como se a nossa vida pudesse ser catalogada por gêneros? Nada disso. O salto da leitura não tem a ver com saber enciclopédico, com enredos memorizados, com prateleiras a exibir nas redes como se fossem um guarda-costas. Pode passar por tudo isso, mas o salto vem depois: é uma experiência que vivenciamos a sós, reelaboramos e utilizamos para enriquecer a nossa bagagem pessoal e a nossa relação com os outros.

São suficientes as sugestões que apresentei para demonstrar que não tenho predileção por abordagens que transformam os livros em objetos a serem consumidos. Se é verdade que a leitura alimenta a alma, isso não se dá por acumulação, mas por transformação dos estados da matéria. Ler para exibir quantidades é uma espécie de perversão. Não que alguns desvios não sejam tentadores, mas, como mostra a própria literatura, às vezes devoradores de livros escondem outras fomes fora da ficção. A leitura pode ser uma fuga e um porto seguro para os revezes que enfrentamos.

Aí entram os problemas e a experiência de leitura: quando leio, uma das sensações mais interessantes que experimento é a de descobrir uma ferramenta para desvendar segredos. Todo livro ensina, para além da história narrada, formas de resolver dilemas. Capitu traiu ou não traiu? Não importa: o que o romance de Machado de Assis nos conta é sobre a dor de uma existência passada na dúvida. O que o livro oferece são diferentes abordagens para enfrentar impasses, em diferentes situações e momentos da vida. Seus questionamentos se multiplicam cada vez que o Casmurro encontra alguém: quando encontra o amigo Escobar, quando é arrastado pelo olhar de Capitu, quando observa o filho Ezequiel.

Romance não é emplasto para todos os males, como mostraria o mesmo Machado em outro romance magistral, mas pode oferecer algumas ideias sobre como encarar problemas análogos, que todos têm. Todo mundo tem, todo mundo passa. E por isso o romance é um gênero tão popular e tão característico do mundo contemporâneo: na narrativa os escritores se concentram basicamente em sujeitos que não existiram, mas poderiam ser o nosso vizinho, o nosso parente, o nosso desafeto, o nosso ídolo. Convém lembrar que dentro do romance tornam-se ficcionais até mesmo personagens inspiradas em pessoas que de fato existiram: são de mentirinha, entretanto servem para desafiarmos as convicções que acreditamos ser evidentes. Um livro que não nos confronta não nos oferece o penhasco do qual dar o nosso salto.

Mergulhar comporta riscos: em O Nome da Rosa, de Umberto Eco, o desejo de conhecimento leva à morte, pois as páginas manuseadas estão envenenadas. Aqui a questão também é outra, além de descobrir o mistério das mortes na abadia. Se substituímos Idade Média por mundo atual e páginas por informações, percebemos facilmente como o desejo de distinção entre notícias e fake news pode ser uma operação que exige rigor, coragem, conhecimento, leituras. Cada época possui o seu veneno, a sua leitura e o seu salto a dar. Hoje, ao ler livros recheados de mentiras – de qualquer época – podemos descobrir instrumentos para desvendar as falsidades que nos enredam.

Não podemos nos valer das almas puras e dos moralistas sempre prontos a anunciar uma verdade longínqua da realidade para compreender a rede de intrigas na qual estamos mergulhados. Para dar o salto e deixar de ser um simples consumidor de mentiras e um mero repetidor de conceitos lidos em uma apostila – como faria o traído Numa, sensacional personagem de Lima Barreto – a saída é ler, ler muito, mas não para exibir títulos e listar personagens. A solução é ler para desentranhar os segredos que os escritores tentam guardar, mas que os textos não conseguem esconder completamente. Este é o salto. Esta é a aventura. Este é o poder que o leitor adquire, que o liberta da ignorância e que em diferentes épocas desencadeou reações violentíssimas. Não por acaso, o nazismo produziu uma fogueira de livros. As ditaduras perseguem e matam escritores e jornalistas, censuram livros, calam a crítica.

A leitura preocupa os manipuladores e não serena a alma de quem lê. Ao contrário, quanto mais lemos, mais tristes ficamos, porque melhor compreendemos a nossa própria condição. Quanto mais compreendemos, mais somos perigosos e ameaçadores para os que desejam apenas garantir o próprio poder graças à ignorância de massa.

Veneno: se hoje o papel não está mais sujeito a envenenar leitores, há governos dispostos a deter a circulação dos livros aumentando os impostos. Mais do que uma questão de preço, os neoliberais sabem que uma população culta não se deixaria enganar tão facilmente por projetos inconsistentes e ameaças nefastas. É uma tentativa de controle, mas uma medida não pode conter a avalanche de livros que hoje temos à disposição para mudar o nosso rumo. Nenhuma política conseguirá deter os livros: poderá deter os potenciais leitores, se eles não forem capazes de tentar o salto. O conhecimento, apesar de todos os esforços para torná-lo inacessível, continua à disposição, mas cabe aos leitores não torná-lo um instrumento vão.

É a hora do salto, mas não farei uma lista de livros. A aventura da descoberta é uma experiência fantástica, que não vale a pena estragar por meio de manuais, resumos e listas. É a emoção que precede o salto na leitura e o salto para dentro da própria vida ao virar as páginas escritas por outro par de mãos. Um, dois, três: quem será o próximo a saltar?

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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