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Palavras para os dias melhores

Gislaine Marins

Palavras para os dias melhores

Palavras para os dias piores

Palavras para sobreviver

Palavras que eu gosto

Palavras das quais não desgosto

Palavras necessárias

Palavras inúteis, as únicas que ficam porque não se desgastam

Palavras eternas

Palavras mortas

Palavras vivas

Palavras frescas

Palavras novas

Palavras que ainda não foram inventadas

Palavras que foram esquecidas

Palavras relembradas

Palavras que não foram excluídas nas tentativas anteriores

Escrever é uma história de cortes e revisões. Mais do que invenção, escrever é a história do registro de possibilidades. Escrever é um jogo tenso com a mentira: todo escritor sabe que o que escreve não é a verdade, mas não escreve para enganar ninguém. Ao contrário, os propagadores de mentiras sabem o que fazem e o fazem com o objetivo claro de enganar e obter vantagens com isso. O que ganham? Obtêm controle, poder, influência. Mentirosos são corruptos por definição.

O escritor, na dúvida, elimina uma palavra excessiva para evitar o desnecessário. O mentiroso sempre inclui um ponto no conto para engordar a falácia. O escritor dá espaço à interpretação e às dúvidas do leitor. O mentiroso fecha os espaços contraditórios: uma mentira geralmente é uma história redonda, perfeita, sem buracos, sem entrelinhas, sem incoerências, conduzida para reiterar as premissas. O escritor faz pensar, o mentiroso convence.

Escritores e mentirosos usam as mesmas ferramentas e os mesmos métodos. Muitas vezes, usam até as mesmas palavras. Entretanto, apenas o escritor abre lacunas para fazer o leitor percorrer linhas perigosas e usa as palavras como treinamento para os caminhos tortuosos da vida. Quem sabe enfrentar palavras escritas também aprende a enfrentar discussões.

Nada pode ser mais ofensivo para um escritor que uma história bem contada. Mentirosos são os seus piores inimigos, porque disputam a cabeça do leitor com penas que parecem iguais às suas. A pena do mentiroso, porém, sufoca. A pena do escritor talha para salvar. As únicas palavras que podem sobrar para os dias melhores, se é que dias melhores existem, são palavras resgatadas antes de serem assassinadas pela mentira.

Todos os dias corro contra o tempo, palavra poderosa, que marca nossos limites e a nossa ousadia. Busco palavras perdidas, palavras velhas, palavras contagiadas por outras palavras e por outras culturas. Abro os ouvidos para as palavras que surgem e que nos salvam, porque enquanto há palavra, há povo. Revolto-me quando tenho notícias de línguas que morreram e lamento pela morte de muitas línguas no nosso país. Quando não tivermos mais palavras para exprimir o amor, o talento, a saudade, a própria criatividade, de que terão valido tantas mentiras?

Somos extremamente superficiais e imprudentes com as palavras. Experimentem perdê-las. Tentem passar um dia inteiro sem algumas palavras essenciais para o cotidiano. Verão que o que digo não tem a ver com aulas enfadonhas de regras gramaticais. Tem a ver com a possibilidade de convivência humana. Tem a ver com o risco cada vez mais iminente de mergulharmos na barbárie. Tem a ver com o desprezo pelos esforços que os professores fazem, apesar dos poucos meios de que dispõem. Tem a ver com os cortes na universidade. Tem a ver com a concepção de que a instrução é um luxo e não um bem essencial. Tem a ver, em síntese, com um monte de mentiras que nos contam e nas quais acreditamos porque é mais fácil acreditar no que não exige pensar. Tem a ver com o que consideramos sobre o próprio tempo e a própria vida, que não é uma busca pela felicidade, mas uma luta cotidiana para chegar ao final e dizer apenas: valeu a pena ter vivido até aqui e ter tido a lucidez de viver plenamente nas minhas faculdades mentais. Tem a ver com a aspiração humana de exercer o seu livre arbítrio e não ser manipulado inescrupulosamente.

Quando as palavras são boas, eles servem para os dias melhores, e para os piores também. Servem para sobreviver, embora nem sempre sejam palavras das quais gostamos. Nem sempre são necessárias, porque o desnecessário é importante para não ser consumido e para inspirar em nós a ideia de continuidade. Quando as palavras são boas, elas não ficam cristalizadas, como se devessem ser conservadas em um museu do tempo perdido. São vivas e conservam a frescura de um dia que amanhece, embora sejam o mesmo sol que nos aquece todos os dias. Palavras boas se adaptam e parecem inventadas quando foram esquecidas. As palavras podem ser boas de muitas formas. Só não podem ser mentira.

 

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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