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Aos vermes, em dez pontos

Gislaine Marins


1. Um dos romances monumentais de Machado de Assis é dedicado ao verme que primeiro corroeu o seu cadáver. Ele dedica ao verme, não às traças, que roem as palavras nas folhas de papel.
2. Meu tio conhecia o feitiço das palavras. Para melhor infundir respeito entre os subordinados, antes de uma grave advertência citava a passagem de um livro, sem esquecer de mencionar a página. Isso levava as pessoas a acreditarem que ele era muito culto e aumentava a sua credibilidade. E especialmente o seu poder de sujeição.
3. Quase todo jornalista ao entrevistar personalidades pergunta qual é o livro que estão lendo. Em um país onde a leitura é uma ação quase heróica, indicar o título na cabeceira reafirma a excepcionalidade do entrevistado. Todos deveriam saber disso para não passar vergonha ao vivo. Mas nem sempre a fama garante a esperteza do meu tio.
4. Quando uma personalidade faz citações sem ser perguntado e dá vexame de interpretação em público, podemos chegar a duas conclusões: ou acha que os interlocutores são ainda mais burros, ou não sabe o tamanho da própria burrice. Mas sempre tem alguém que sabe, e que irá desmoralizá-lo, também publicamente.
5. Os vermes não têm cultura: então, por que Machado de Assis dedica o romance a um exemplar da espécie?
6. A resposta está na frase final do livro: "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria".
7. Aparentemente niilista, a frase ressalta o valor das palavras, única herança capaz de sobreviver à destruição da carne, à ausência de herdeiros e à nossa miséria cultural.
8. Machado de Assis era um otimista irônico: sabia que vivemos de memória, escreveu à espera de um leitor, não de uma traça.
9. Cuidado com pessoas que atacam os livros e com as que esquecem os últimos livros que leram. Cuidado com os que interpretam à revelia do texto.
10. Não nascemos para ser vermes, traças ou leitores desmemoriados. Ser humano é a maior aventura da espécie intelectualmente mais desenvolvida do planeta, mas para isso é preciso usar este instrumento complexo e fantástico: a linguagem, que serve para comunicar, criar cultura e, quem sabe, não ser enganado por espertos e charlatães.
Dito isso, concluo lembrando que os vermes não poupam ninguém, as traças são insetos perigosos e a leitura oferece inúmeras oportunidades para escapar de uma vida à mercê de manipuladores e ignorantes prepotentes, orgulhosos do seu não saber.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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