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Tempos moderníssimos

Gislaine Marins

Em 1936, Charlie Chaplin, além de escrever e dirigir o filme “Tempos Modernos”, escreveu a melodia da famosíssima “Smile”, que ficou ainda mais célebre quando passou a ser cantada por Nat King Cole, sem falar das dezenas de versões subsequentes. O tema musical faz a moldura de um filme que trata a condição social dos pobres durante a Grande Depressão com leveza, sem deixar de apresentar as críticas a um sistema que prometia bem-estar geral. De fato, o título é explicado com uma legenda que diz: “Uma história de indústria, iniciativa privada – a humanidade em busca da felicidade”.

A leveza de Carlitos arranca risadas ainda hoje – sinal da atemporalidade da obra – quando na linha de montagem os braços são ritmados pela vontade do dono da fábrica em aumentar cada vez mais a produção e ficam hipnotizados pelo movimento mecânico. O operário passa a ver parafusos em tudo e quer apertar botões das roupas das moças, o nariz dos colegas, do supervisor, tendo uma verdadeira crise nervosa.

Eu queria ter esse dom de representar e comover, sem incitar ódio, mas a indignação dos justos, para que pudéssemos enxergar formas de deter aquilo que hoje nos empobrece. Não tenho a graça da arte e me falta o talento persuasivo para a tarefa de transformar o mundo. Só me resta descrever.

Nos dias de hoje, Carlitos seria motorista de aplicativo. Disso tenho certeza. Não existe atividade mais ilusória no mundo em que vivemos. Os donos de aplicativos prometem uma economia horizontal, em que o trabalhador é parceiro de riscos, mas excluído dos lucros. Eles dizem que a pessoa só trabalha quando quer, mas como pagam pouco, o trabalhador precisa labutar mais do que faria um assalariado para ganhar a sua jornada. Eles dizem que a vida é simplificada, afinal, na informalidade a burocracia não alçança ninguém, mas os benefícios também não são previstos. Não existem férias, não há décimo-terceiro salário, doença ou licença de qualquer tipo. Eles colocam o empreendedor de si mesmo contra os assalariados, como se salário fosse bico de fracassados. Advogam a liberdade de escapar dos impostos, matéria que apavora donos de aplicativos, esquecendo que a cota do Estado serve para ser posta a serviço de todos, especialmente de quem mais precisa, quando precisa. Em uma frase: o Estado é responsável por manter o pacto social.

Nos tempos moderníssimos, Carlitos seria o pai das órfãs, que mesmo tendo um pai seria como se não tivessem, pois ele passaria mais tempo na rua do que contemplando a fome das filhas. Para não desmaiar no volante, chamaria um outro entregador de aplicativo para trazer um sanduíche, a ser entregue no cruzamento de uma grande avenida, naqueles trinta segundos em que o vermelho impede a sua corrida frenética. Tudo calculado por aplicativos de mobilidade que fariam os dois trabalhadores se encontrarem no local certo e na hora exata. Pena que um outro entregador passaria correndo, furando o vermelho de patinete e derrubaria o sanduíche do motorista de aplicativo. O público cairia na gargalhada. Rir do sofrimento alheio ramente tem sentido, a menos que a leveza do texto retire com graça a amargura do contexto.

Nos tempos moderníssimos, o motorista de aplicativo também seria alvo de uma confusão, cairia em uma blitz da polícia e seria preso por ser confundido com outro ladrão da bananas ou de pão. No fim, sem carro e sem comida, seguiria no seu caminho, por uma longa estrada.

“Sorri / Vai mentindo a tua dor / E ao notar que tu sorris / Todo mundo irá supor / Que és feliz”. A versão portuguesa, criada por Braguinha, não é exatamente fiel ao texto original inglês, escrito por John Turner and Geoffrey Parsons, mas evoca muito o poeta Fernando Pessoa, quando escreve: “O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”. No fundo, a gente não acredita que tudo vai dar certo, mas sabe que vai acreditar que vai dar certo. Mais importante do que acontecer é acreditar.

Nosso Carlitos de tempos moderníssimos provavelmente seria mais realista na sua crença, pois é ela que puxa os fios de uma esperança capaz de fazê-lo voar, sem patinetes, bicicletas, motos, carros para o paraíso do mundo sem aplicativos. Um mundo em que as pessoas se encontram de verdade, se abraçam de verdade, comem juntas. Um mundo em que sabem que a economia horizontal é mentirinha e a nossa confiança é verdadeira. É com essa força invisível, sem outros meios, que os pobres não possuem recursos materiais, que poderíamos repensar o efeito dos aplicativos na degradação das condições de vida dos trabalhadores hoje. E pensaríamos na degradação da vida em geral, em que já não conhecemos o boteco da esquina, em que os armazéns morrem, em que não conhecemos os comerciantes do bairro pelo nome, em que não sabemos o nome de nenhum garçom e eles também não sabem quem somos.

Hoje talvez não pudéssemos ter um Noel Rosa, ou um Zé Keti dizendo que foi por aí. E provavelmente Nara Leão também já não diria que não muda de opinião. São outros tempos. Tempos moderníssimos. Mas os tempos que virão podem ser diferentes. Começando pelos nossos hábitos, pela nossa esperança e pela perda das nossas ilusões.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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