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Os Novos Gentios

Vanildo Luiz Zugno

 

Na tradição católico-romana brasileira, o mês de outubro é, tradicionalmente, dedicado às missões. Nele, os membros da igreja são chamados a colaborar para que a Boa Nova de Jesus Cristo seja anunciada em todos os lugares. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, através de seus diversos organismos e meios, volta-se para que o espírito missionário se mantenha vivo e amplie em todas os espaços eclesiais.

Conforme as Pontifícias Obras Missionárias, principal braço operador da Campanha Missionária, neste ano de 2024 foram enviados 290 mil livros de novenas, 155 mil cartazes, 810 mil mensagens do Papa, 5 milhões de santinhos e 6 milhões de envelopes para a coleta missionária. Uma ação digna de louvor nestes tempos em que muitos católicos são seduzidos por uma espiritualidade autorreferencial pregada por “influencers” católicos preocupados acima de tudo com a manutenção de seus currais eclesiais e a monetização de suas redes sociais.

Em meio a tamanho e louvável esforço, há um detalhe que me chamou a atenção. É o do vídeo de promoção da Campanha Missionária. A qualidade técnica do vídeo contrasta, a meu modo de ver, com uma proposta missionária que parece não responder aos tempos e lugares atuais de missão. Não sou especialista em Missiologia, reconheço. Mesmo assim, arrisco algumas considerações que, peço, caso eu esteja equivocado, corrijam na devida forma e conteúdo para que possamos juntos crescer como testemunhas da fé que recebemos no batismo.

No meu modo de sentir, parece-me que o vídeo repete o clichê tradicional de que os gentios a serem evangelizados são os indígenas da Amazônia, os africanos e os pobres das periferias urbanas. Em todo o vídeo, há apenas duas cenas urbanas. E são das periferias das cidades onde, na imagética do vídeo, estariam os gentios a serem evangelizados. E esses gentios das periferias urbanas, não por acaso, são quase todos negros! E mais: em quase todas as situações apresentadas pelo vídeo, os missionários são pessoas brancas.

Não seriam essas imagens indicadoras de um colonialismo, rejeitado no conceito, mas mantido e praticado no inconsciente eclesial? Os conceitos revelam o consciente. As imagens, muito mais poderosas, manifestam o inconsciente que permanece para além de toda elaboração teológica e pastoral.

Mas há um problema ainda mais profundo. É o de saber quem, realmente, precisa ter acesso à Boa Nova de Cristo. Precisa dela o nativo da Amazônia que vive harmonicamente com a floresta, os rios, os animais e o seu grupo humano ou o fazendeiro sulista que vai ao norte para derrubar a floresta, vender ilegalmente a madeira e plantar pasto para criar gado ou soja para exportar para a China, Europa e Japão sem preocupar-se com as mudanças climáticas geradas por sua ação ecocida? Precisa da Boa Nova o africano que sobrevive em um ambiente comunitário partilhando com seus familiares amplos os recursos da natureza e do trabalho ou o branco europeu ou norte-americano que para lá vão para saquear os recursos naturais abundantes daquele continente assim como fizeram no tempo da escravidão ao saquear os recursos humanos construídos ao longo de milênios? Precisa da Boa Nova o morador da periferia que, mesmo na pobreza e acossado a cada dia pela violência da polícia, do tráfico e das milícias ainda consegue garantir a sobrevivência para seus familiares e ainda partilhar gratuitamente com os vizinhos e amigos que vivem a mesma situação ou o especulador imobiliário que, manipulando o poder público, empurra as pessoas pobres e pretas para periferias cada vez mais distantes dos lugares de trabalho e dos equipamentos públicos de educação, saúde, cultura e lazer?

Como mostra o vídeo institucional – e isso é muito louvável -, para os habitantes da Amazônia, da África e das periferias urbanas, a missão cristã leva a Boa Nova da Esperança. Mas como não mostra o vídeo – e isso é muito lamentável -, a missão cristã é também palavra profética que denuncia as causas das situações de pobreza e marginalidades urbanas, regionais e continentais.

A realização do Reino implica na denúncia do anti-Reino. Como nos mostra a ação de Jesus nos Evangelhos, para que a Boa Nova do Reino se manifeste e seja conhecida, é preciso expulsar os demônios que escravizam e alienam as pessoas. Sem isso, a missão pode resumir-se a espetacularismobanhado por um falso irenismo em que nós, brancos que ocupamos os espaços sociais e eclesiais de poder e saber, nos arvoramos em anunciadores da Boa Nova aos coitados periféricos que vivem nas trevas da ignorância e da pobreza. Foi com essa intenção que, na segunda década do séc. XVII, na sequência do Concílio de Trento, foi fundada a “Propaganda Fide”. Mas já estamos no séc. XXI e o Concílio Vaticano II está a completar 60 ano de sua realização em que propôs uma nova forma de pensar a missão.

Sobre o autor

Vanildo Luiz Zugno

Frade Menor Capuchinho na Província do Rio Grande do Sul. Graduado em Filosofia (UCPEL - Pelotas), Mestre (Université Catholique de Lyon) e Doutor em Teologia (Faculdades EST - São Leopoldo). Professor na ESTEF - Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (Porto Alegre)."

 

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