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O segredo é conhecer

Gislaine Marins

Moacyr Scliar não era apenas um grande escritor, era um sábio. Isso não signifca saber tudo, significa ter consciência do valor do saber. Declinou o amor pelo conhecimento de várias formas, ressaltando a importância da memória e da palavra. A sua literatura abarcou continentes, séculos e culturas: a matéria da sua escrita era o humano, o que nos torna humanos. E para isso é necessário conhecer.

Por muito tempo, Scliar foi apenas um escritor gaúcho. Depois a sua obra começou a chamar a atenção da crítica de brasilianistas nos Estados Unidos, e ele passou a ser um escritor brasileiro. Era mais do que isso, foi um escritor universal, com aquela humildade e generosidade que somente os gigantes podem oferecer.

Quando Scliar descobriu que eu tinha escrito a minha dissertação de mestrado sobre o seu romance Cenas da Vida Minúscula, escreveu uma carta, que chegou pelo correio, assinada e cheia de consideração. Fiquei comovida, grata e ainda mais impregnada de admiração pelo intelectual que imprimia no papel, na vida e na história uma grandeza rara no mundo.

A frase final do romance é muito profunda, apesar da simplicidade do seu léxico e da sua sintaxe: “Não é pouco o que hoje sei, digo, e esta verdade me faz sorrir, se não feliz, ao menos pacificado: não é pouco o que hoje sei”. A frase encerra a cena, de aparente cotidianeidade, em que o protagonista aciona o segredo do seu automóvel para colocá-lo em movimento. É apenas o último dos muitos segredos revelados na narrativa. É apenas o epílogo que uma história de busca pelo conhecimento, que faz sorrir, e talvez não torne ninguém feliz.

Sejamos francos: o conhecimento não traz felicidade necessariamente. E o que importa?

Scliar respondeu a alguns questionamentos que acompanharam a minha juventude e o meu amadurecimento. Ao conhecer os problemas que afligem as nossas sociedades, perdi o encanto de experimentar a felicidade. É claro que podemos ficar felizes quando recebemos uma notícia boa, quando realizamos algo em que acreditamos, quando as pessoas promovem o bem. Podemos ficar felizes por nós e pelos outros. Mas podemos esquecer as mortes, as guerras, as catástrofes, as mentiras e desconhecer aquilo que nos angustia? É melhor conhecer com tristeza ou ser feliz na ignorância? Não tenho a menor dúvida em responder que é melhor conhecer, apesar dos pesares. Pois conhecer é poder escolher, consertar e concertar, é poder compreender e mudar. É poder aceitar ou não a realidade que nos rodeia.

Quando defendemos o conhecimento e a educação, sabemos que podemos alimentar também a infelicidade. Ou nutrir talvez uma concepção de obstinada busca pela felicidade, que se completa na felicidade além da nossa experiência íntima e não partilhável. Ou promover um percurso insistente pela felicidade difusa e teimosa diante de qualquer obstáculo. Uma felicidade impregnada de história, memória e vida, generosidade e grandeza, bondade e horizontes amplos. Uma felicidade que só pode ser alcançada conhecendo e reconhecendo, quando nos espalhamos uns nos outros e trabalhamos pelo bem.

Desconfio que Scliar quis revelar este segredo na sua escrita: que conhecimento e felicidade são estradas paralelas e infinitas. Nunca alcançamos o destino, pois viver não é colocar pontos, mas superar vírgulas, ultrapassar interrogações e não esquecer que as reticências servem para rever e recomeçar.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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