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Lar, doce lar

Gislaine Marins


Lar é uma das metáforas mais ignoradas da linguagem cotidiana. Originalmente, definia a divindade protetora das casas e o seu culto está associado ao fogo mantido aceso nas casas para cozinhar e aquecer: a lareira. Lar era um ser mitológico representado por uma figura humana, com cabeça, tronco, braços e pernas. Menciono isso porque acho que o corpo é a casa mais importante que temos. De alguma forma, todos somos um lar para nós mesmos e o mundo é um país estrangeiro, que nos acolhe ou nos rejeita, oferece trabalho, aventuras, paisagens, elementos para a nossa sobrevivência. Oferece arte e estímulos; mas é para a nossa casa, é para o nosso corpo que voltamos a cada instante, até o último momento da nossa vida. O corpo é o nosso refúgio e o nosso espaço de liberdade. Em qualquer lugar do mundo, mesmo nos piores, mesmo na prisão, na doença ou na pobreza, nosso corpo, nossa vida e nossa fragilidade são um desafio aos violentos. A nossa força é a nossa fragilidade. Os poderosos podem fazer tudo e ter tudo, mas sabem que atacar a nossa fraqueza é esvaziar o seu próprio poder. É um paradoxo que entendi com um escritor grego.
Depois de ter visto o filme "A última tentação de Cristo", li o romance de Nikos Kazantzakis, que inspirara a obra cinematográfica. Foi amor à primeira lida. Em seguida, li o romance que mais me impressionou: "O pobre de Deus". Foi a primeira biografia de um santo – Francisco – que li. É um relato intenso, do qual emerge com toda a sua força a fragilidade do Pobre de Assis. Francisco é carente material e fisicamente, e nisso reside toda a sua força. Maria Antonieta, uma das mulheres mais poderosas da sua época, deixou ao mundo o castelo de Versailles, uma cabeça degolada e a fama de ter mandado o povo comer bolo, quando não tinham nem mesmo pão para saciar a fome. Francisco, que não tinha nada e tinha se despojado de tudo, deixou uma inspiração que motiva pessoas há oitocentos anos.

No corpo, nos estigmas e nas doenças estava a força do Francisco real e do Pobre de Deus literário. Não estava nos tecidos refinados dos quais abriu mão, renunciando à sua herança. O escritor, dessa forma, retorna ao tema da materialidade, também presente na “Última Tentação..”: o que interessa ao narrador é o corpo físico, crucificado, que vence a tentação de uma vida em um mundo prometido, mas irreal. Ao descrever a doença de Francisco e a dor da crucificação de Cristo, e com elas a tomada de consciência da materialidade do corpo, Kazantizakis humaniza seus personagens. Apenas nós, nunca os deuses, podemos sentir a dor física e experimentar a perda quando temos noção da nossa finitude, da nossa fragilidade e da nossa pobreza. Nós, que não temos nada a perder, temos tudo a ameaçar: nós somos o pesadelo dos poderosos, daí a violência insana que jogam sobre populações indefesas, daí o retorno da tortura para aterrorizar a nossa audácia. Qual é a nossa ousadia? Viver, apesar das improbabilidades. A nossa ousadia é continuar vivos apesar dos vírus e da ameaça de desmantelamento de um sistema de saúde que possa minimizar os sofrimentos. A nossa ousadia é sobreviver sem a garantia do pão no dia de amanhã, sem perspectiva de uma aposentadoria digna, sem a possibilidade de ter um teto sob o qual venerar uma divindade e poder dizer ao fim do dia: lar, doce lar. Às vezes a nossa ousadia é já não ter certeza de um prato de comida quente e nem uma casa aquecida para enfrentar os dias mais frios. Se soubéssemos o tamanho da nossa ousadia, seríamos ainda mais destemidos, mais massacrados, mais agredidos na nossa dignidade. Seríamos destinados a crueldades ainda piores do que aquelas a que nos submetem os poderosos com seus planos e reformas.

Não sei se precisamos de mártires, embora perceba que a nossa sobrevivência e a nossa morte lenta, frustrada e pobre, alivia muito a carga de culpas dos vilões dos nossos dias. Na realidade, não sou capaz de defender o martírio, porque defendo a vida. Acredito na vida e no corpo como templo que devemos conservar e proteger. Acredito na cabeça como espaço privilegiado de resistência, onde podemos compreender toda a nossa liberdade e toda a nossa tragédia; acredito no coração como lugar caloroso e sombrio, nos dias em que tocamos com os dedos o nosso sofrimento. Acredito na habilidade dos dedos e na velocidade dos pés. Acredito na dor de barriga, que adverte os nossos temores. E acredito nos ouvidos e nos olhos, sem os quais não teria visto o mundo aqui fora, não teria lido os meus romances preferidos e não teria compreendido que os paradoxos são parte de uma existência complexa, que vale a pena viver, apesar de todos os reveses.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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