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Cálice, cale-se, cálice

Gislaine Marins

O vinho tinto de sangue é apenas a última gota que voltou a fazer transbordar a nossa maior vergonha. A escravidão é a face mais feroz da máquina mercante, que nos trocou e nos tem trocado em tantos negócios e por meio de tantos negociantes.

Diante dos recentes acontecimentos, é impossível não retornar ao poema Triste Bahia, de Gregório de Matos Guerra, escrito no século XVII, e recuperado por Caetano Veloso em 1972. São os séculos e as décadas batendo na nossa cara, custando a passar com os seus pesadelos agarrados aos nossos dedos. É impossível não retornar aos versos da célebre canção Cálice, escrita por Gilberto Gil e Chico Buarque, que evocava o episódio da morte de Cristo para aludir ao calvário dos injustiçados.

A gente pode calar, constatar que o problema não é nosso, virar para o outro lado e seguir a vida. A gente pode dizer que não bebe. A gente pode até justificar que é uma questão de assistencialismo, como se um salário não tivesse que ter um valor superior ao de um auxílio. Realmente, a gente pode dizer tudo, se nada nos interessa. E pode calar pelos mesmos motivos. Podemos fazer o que quisermos, porque somos livres.

Eles não. Eles não podem, porque precisam. Porque não se esforçam. Porque tiveram azar na vida. Porque são nordestinos. Porque são pobres. Porque são os perdedores na vida. Porque não têm futuro. Porque isso nem é gente, parece bicho. Porque eles jogariam fora o dinheiro, se fossem melhor pagos. Porque não sabem economizar. Porque é melhor pouco do que nada. Porque são ingratos. Porque escarram no prato em que comem. Porque não têm higiene. Porque são culpados da própria desgraça. Porque quem procura acha. Porque aceitaram e agora reclamam. Porque a gente dá a mão e querem o braço. Porque escravo bom é escravo mudo.

Nisso constato que Gregório de Matos Guerra continua a ser um autor essencial na nossa formação. Assim como Antônio Vieira pregando aos peixes, revoltado com os donos das capitanias hereditárias que capturavam e escravizavam os indígenas. Continua sendo essencial dizer que temos famílias quatrocentonas e estamos parados há quatro séculos na mentalidade segundo a qual quem pode pode, quem não pode se sacode. A justiça existe, mas não dá conta da crueldade disseminada: entre os que praticam e entre os que se calam diante do horror.

Queria ter uma nau que me levasse ao rei, e que ele me recebesse como fez com Vieira e que eu contasse para ele essas histórias: não apenas a última, mas também as outras, que infamam a nossa terra e inflamam a minha memória.

Por exemplo: que todas as vezes que ia visitar a minha tia, encontrava todos, inclusive os meus quatro primos pequenos naquela labuta infinita, que eles chamavam de bico: trançar o couro que depois era levado para a próspera indústria do calçado. Tudo muito mal pago, sem contrato, sem direitos, para arredondar a feijoada com um pouquinho de carne a mais.

Por exemplo: que a dona da facção distribuía os tecidos na vizinhança e passava depois de alguns dias para recolher as roupas que a indústria de moda revendia para as lojas da Capital. E a gente ouvia as pedaladas das máquinas de costura que iam até tarde, quando a televisão transmitia o último episódio da série Dallas.

O rei iria ouvir o meu relato e iria dizer que sim: estaria abolida a captura de baianos, de argentinos – que trabalham e não reclamam –, mas também dos trabalhadores locais, que preferem uma assistência à escravidão. O bom rei iria enfurecer os donos das capitanias hereditárias, eu sei. E eles continuariam desafiando a lei e a ordem, mas especialmente a ética e a ideia de que o sangue que corre nas veias de um trabalhador é igual ao do dono da terra e da indústria. Continuariam organizando o tráfico de escravos, corrompendo os funcionários dos portos, proclamando a liberdade e mantendo o sistema escravocrata, pedindo ressarcimento pela perda dos lucros e chamando os trabalhadores de preguiçosos. Coisas que a gente estudou na escola, mas que por algum motivo inexplicável, esquecemos de aprender e aplicar na vida.

A gente bebe no cálice da história e do conhecimento todos os dias. Que espécie de pileque é esse que nos torna indiferentes, cruéis e arrogantes diante do nosso povo? De que adianta ter boa vontade? Neste mundo pequeno, quando deixaremos de ser mesquinhos? Cálice, cale-se, cálice.

 

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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