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Sem eira nem beira, nem ramo de figueira

Gislaine Marins

No dia 1º de novembro de 1922 falecia Lima Barreto, um dos mais argutos observadores da sociedade brasileira na virada da monarquia para a república. É espantoso pensar que a nossa república possui apenas pouco mais de cem anos, assim como a abolição da escravatura. Talvez não tão espantoso quanto desolador seja o fato de estarmos há mais de cem anos tentando contemplar uma república estável, consolidada. Ao contrário, já colocamos nos currículos escolares e nos anais da história os golpes, os regimes e as tentativas de sabotagem dessa longa e difícil construção democrática. Os eventos que estamos observando desde o domingo são mais um episódio de uma lamentável série.

É evidente que iremos superar a crise. Mais complicado será tratar a doença, que nos torna vulneráveis periodicamente diante das tentações autoritárias e prepotentes, que nos transforma em violadores das instituições, dos mais basilares princípios de convivência social, que nos faz ignorar as necessidades e os direitos fundamentais das pessoas.

Uma das tantas obras de Lima Barreto publicadas postumamente intitulava-se “O cemitério dos vivos”. É o modo como o autor definia o manicômio, instituição na qual tinha sido confinado devido à depressão e ao alcoolismo. Mas não era apenas isso que levava as pessoas aos hospícios: Lima Barreto descreve que havia uma ala para epilépticos e até um setor para os tuberculosos. Qualquer coisa, na realidade, podia ser usada como motivo para internar uma pessoa, como já tinha narrado Machado de Assis em “O Alienista”. O cemitério dos vivos era, no entanto, também uma alusão à indigência humana, que Lima Barreto descreve ao mencionar o relato de um diplomata no Cantão, na China: um local público, onde aqueles que sentiam a morte chegar recebiam comida, roupa e caixão para morrerem calmamente, à vista de todos.

Era isso o hospício: um local onde ir morrendo aos poucos. Um lugar onde eram confinados os que não tinham eira, nem beira, nem ramo de figueira, como escreve o autor. Apesar disso, o hospício é o lugar onde Lima Barreto escreve boa parte das suas obras, marcadas pela denúncia social, e nas quais emergem igualmente a humanidade negada. “O cemitério dos vivos”, em particular, evidencia o questionamento sobre a classificação da loucura e a descrição de um mundo que em nada ou pouco difere do universo exterior aos muros sanitários.

“Fiquei eu só no vão da janela”: esta é a frase que encerra a narrativa manicomial de Lima Barreto. No último fragmento da obra, ele descreve o encontro com dois internados da sua ala. A conversa não apresenta qualquer elemento que possa aludir a um contexto psiquiátrico: pelo contrário, os participantes falam das suas histórias, das suas origens, de publicações, da formação, de cultura. O cenário de um hospício torna-se ainda mais absurdo diante do relato apresentado.

Se as pessoas descritas por Lima Barreto eram internadas e classificadas como “loucas”, a sensação ao encerrar a leitura é que além e aquém da janela disseminava-se a injustiça. Além e aquém da abertura denunciava-se a iniquidade, a desumanização. Pois é lógico e evidente que se o manicômio representa um equívoco, o que está fora dele necessariamente também o é. Somente a solidão oferece o distanciamento para ver ambos os lados na sua insensatez.

Lima Barreto e Machado de Assis já tinham explicado bem a dinâmica binária que separa os loucos dos demais: é um maniqueísmo que nem sempre se limita a criar uma metáfora literária. Por vezes torna-se tragicamente real, com consequências irreparáveis. Vivenciamos um desses momentos, de surto coletivo, de anti-metáfora. De injustiça deflagrada. De arrogância econômica exacerbada para impor à coletividade interesses pessoais e de categorias sociais. São os promotores da baderna generalizada a que assistimos nesses dias que espezinham a república, desprezam a democracia, debocham da verdade, insultam a caridade e a coesão social. Esse, hoje, é o nosso cemitério dos vivos, em que alguns invocam o golpe e a morte.

É urgente recobrar os rumos, percorrer novas trilhas, rever as balizas, salvar o ramo da nossa figueira. Temos os exemplos, temos a história, temos as tragédias. Possuímos os instrumentos para reumanizar o nosso destino. E temos uma democracia clamando por paz. Da nossa janela, sejamos capazes de ver a nossa responsabilidade. Sejamos mais leitores e menos arruaceiros. O mundo será melhor.

 

 

 

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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