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Presépios, pobres e escravos

Gislaine Marins

O final do ano se aproxima e com ele celebramos 795 anos do primeiro presépio vivo da história. Em 29 de novembro de 1223, ao receber a aprovação da sua ordem em Roma, Francisco pediu ao Pontífice a autorização para representar a Natividade, considerando o Natal que se aproximava. O local escolhido pelo Santo para a representação foi a cidadezinha de Greccio, perto de Assis. Francisco era muito ligado a este local pela sua pobreza e simplicidade, mas também porque em nenhum outro lugar, dizia ele, tantas almas tinham acolhido a fé. Hoje, quase oitocentos anos depois, a tradição de montar o presépio está presente nos quatro cantos do mundo, mas o que mais impressiona é pensar que os pobres nazarenos, como na Greccio medieval, estão nas grandes cidades do mundo, nas fronteiras fechadas aos que buscam refúgio, nas periferias caídas novamente na miséria, e nós não os percebemos.

Quando cheguei em Roma, em 1998, o que mais me impactou foi ver indigentes nos semáforos ou ajoelhados no meio da calçada, esperando pela piedade alheia enquanto o vento frio castigava os seus corpos. Ainda havia poloneses fugidos da pobreza em situação difícil, mas muitos vinham das regiões balcânicas assoladas pela guerra. Eram pessoas brancas numa Europa predominantemente branca e isso surpreendia quem, vindo de um continente de tráfico de escravos como o nosso, conhecia principalmente a pobreza de negros, pobres e mulatos. A imigração europeia entre nós tem sabor de vitória sobre a fome, alimenta a ideia de que tudo é possível e não raramente nos leva a esquecer a miséria europeia dos nossos antepassados. Pelo contrário, o sucesso em toda feira do interior do Brasil são os falsos brasões de família, por meio dos quais tentamos enganar a história e o nosso sofrimento ancestral.

Também eram eslavos os miseráveis da Europa medieval. A palavra escravo, em italiano “schiavo” e em inglês “slave”, vem do termo “eslavo”. Por volta do século X, o termo escravo era diretamente associado a eslavo, pois das regiões eslavas provinha a maior parte dos “escravos brancos”: soldados capturados e por vezes familiares caídos na mesma desgraça, endividados ou em outras situações, muitas vezes econômicas, que os levavam a essa condição. Esses escravos não chegaram a se transformar em produtos de mercado na escala que mais tarde atingiu as populações provenientes da África, mas o fenômeno deixou marcas na cultura. Um exemplo é a palavra “ciao” em italiano, da qual deriva o nosso “tchau”. Usada como saudação, no passado significava “seu servo” ou “seu escravo”. “Ciao” deriva da palavra “schiavo”, mas hoje é uma saudação informal, equivalente ao nosso “oi”. É possível que os falantes, ao usarem essa palavra todos os dias, tenham esquecido ou desconheçam que ela está associada historicamente à escravidão e que se transformou em demonstração de deferência na rica Veneza de séculos atrás, na qual eslavos foram escravos e onde saudar uma pessoa usando a expressão “seu escravo” representava o máximo respeito.

Falei de São Francisco, dos pobres de Greccio, dos escravos eslavos e dos imigrantes brancos da Europa porque o Brasil não me sai da cabeça. Eu procuro pensar em outros temas, mas tudo me leva ao nosso país: que voltou a incrementar a pobreza e a jogar os pobres na miséria, sem direitos, sem médicos, sem projetos sociais. Que nação é esta que esquece os lotes dados a imigrantes europeus e aprova a usurpação das terras indígenas? Que população é esta que esquece a falta de um estatuto para regulamentar e ressarcir as vítimas de escravidão por mais de um século e considera qualquer programa de inclusão para os negros uma afronta àquilo que outros grupos sociais receberam? Que país é este que pensa que pessoas sem nenhuma oportunidade na vida podem ter as mesmas chances de quem tudo teve na vida? Que sociedade é esta que enfeita as ruas com luzes, enche a mesa de comida e não vê os pobres que fazem das suas vidas um presépio vivo e permanente?

Espero, como há quase oitocentos anos, que haja uma gruta e um senhor de boa vontade para preparar uma manjedoura, e muitos pobres com os corações cheios de esperança para lá se refugiarem. Se eu encontrar este lugar e estas pessoas terei encontrado o melhor Natal do mundo. É um lugar especial, percebe-se por tudo o que disse até aqui: está exatamente no espaço entre as pessoas, que pode se tornar abrigo, quando colocamos na relação e no diálogo com os demais a nossa sensibilidade e a nossa empatia. É lá que se encontra o melhor de nós e é de lá que retomaremos o caminho para enfrentar e vencer as dificuldades que o próximo ano nos reserva.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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