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Padre Farinella, o comunista

Gislaine Marins

Quando o Padre Vieira, em 13 de junho de 1654, revoltou-se contra os seus paroquianos e pronunciou irritado que não pregaria mais a eles, mas aos peixes, o comunismo não existia. Se existisse, ele seria imediatamente acusado de ser um padre comunista. Por que Vieira estava tão irritado? Porque, ao contrário dos colonos, ele condenava a escravidão dos índios e, bem sabendo que esperar por um milagre é bom, mas agir não faz mal, no dia seguinte, sem aguardar que Santo Antônio intercedesse pelos povos indígenas, embarcou-se para convencer o rei português de que a escravidão dos indígenas era injusta. Em 1680, deu-se o primeiro passo: emitiu-se o documento que, pela primeira vez, reconhecia a propriedade das terras indígenas, mesmo que se encontrassem dentro de uma sesmaria, e concedia aos jesuítas uma verba para a missão de evangelização junto das aldeias. Passados quase 350 anos, os índios continuam ameaçados. Hoje, Vieira estaria na mira dos grileiros, seria acusado de fazer política em vez de rezar missa, seria chamado de terrorista, correria risco de vida e, se morresse em uma emboscada, a sua morte seria minimizada por uma série de subterfúgios usados para justificar os fortes e condenar os fracos.

Padre Farinella também anda bastante irritado. Ele é pároco em Gênova e decidiu que não haverá missa de Natal este ano. A igreja ficará fechada por protesto até janeiro. Farinella, conhecido como Padre Paolo pelos seus paroquianos, acusa a sua comunidade de hipocrisia. Perdeu-se o espírito do Natal: as pessoas se limitam ao fato comercial e a rituais decorativos que anulam o mistério fundamental da fé cristã. Padre Paolo vai além, e é aí que o gesto de defesa da dignidade humana confunde-se com a política: “se Jesus, com Maria e José, se apresentasse a nós para celebrar o seu nascimento, seria detido na fronteira e mandado de volta, porque seria considerado um imigrante econômico, sem visto de permanência e sem direito a asilo, pois na Palestina não há uma ‘velha’ guerra desde 1948”.

Padre Farinella não é comunista, assim como Vieira não era um político. Mas no léxico comum essas são as etiquetas mais fáceis de aplicar a ambos. Também chamam o Papa Francisco de comunista. Alguma surpresa? Não para quem sabe que muita gente não percebe a sobreposição de interesses. Políticos ocupam-se da realidade e da vida, religiosos ocupam-se da realidade e da vida, professores, advogados, médicos ocupam-se da realidade e da vida. Quem lida com a vida humana está sempre sujeito à perseguição e a ser acusado de ser comunista quando defende os excluídos e de fazer política quando age contra os interesses dos opositores. Acusar de ser comunista ou de agir com fins políticos é um álibi quase perfeito, mas por sorte a história, ainda que tardia, coloca os fatos nos seus devidos lugares.

E o contrário, ou seja, os que instrumentalizam a religião para fazer política não é igualmente verdadeiro? Sim. E é isso que o Padre Paolo Farinella denuncia. Este mês foi aprovado na Itália um decreto muito severo em termos de imigração, mas os mesmos políticos que aprovam leis, desconsiderando as recomendações contidas na Declaração de Direitos do Homem, fazem apologia do Santo Natal em total contradição com as suas ações políticas, como se elas não tivessem nenhum efeito sobre a vida alheia. Usam o Natal, festejam, celebram e aderem ao espírito natalício com a amnésia típica dos hipócritas, dos que fazem o bem olhando a quem, dos que amam a si mesmos como a ninguém. Padre Farinella não aceita a seletividade, ele cobra a ética.

Antes de terminar esta história de padres, não poderia deixar de lembrar um outro sacerdote excelente, o Padre Lorenzo Milani. Obviamente, ele também foi chamado de padre comunista, numa época, na Itália, em que estar ao lado dos Estados Unidos ou da União Soviética demarcava a fronteira de relações e amizades. O pecado do Padre Milani era ser amigo dos comunistas em Florença. Por causa disso, ele foi enviado para uma região bastante isolada, no meio das montanhas, onde encontrou a sua fortuna: crianças pobres e sem escola. Durante toda a sua vida ele ensinou e salvou pessoas de um destino secular de miséria. Deu a oportunidade de que necessitavam para melhorarem as suas condições de vida, mas também deu a elas a esperança, este outro nome usado para a fé, quando não se impõe a religião. Um dia, em uma carta a um amigo comunista, Padre Milani escreveu: “No dia em que tivermos arrombado juntos o portão de um parque e instalado juntos a casa do pobre na mansão do rico, lembre, Pipetta, não confie em mim, nesse dia eu trairei você.  Não ficarei ao seu lado. Voltarei para a sua casinha mal-cheirosa e com goteiras para rezar diante do meu Senhor crucificado. Quando você não tiver mais fome e nem sede, lembre Pipetta, que nesse dia eu trairei você. Nesse dia finalmente poderei cantar o único grito de vitória digno de um sacerdote de Cristo: ‘Benditos os... fome e sede’.”

Benditos os que não fecham os olhos à maldade que se aninha dentro de nós. Benditos os que desafiam a hipocrisia. Benditos os que vivem com humildade, sabem que podem errar, mas que podem também corrigir os próprios erros. Benditos os que podem celebrar o Natal. Benditos os que têm fome e sede de justiça. Benditos os padres, os políticos, os médicos, os professores, os advogados e todos os que são chamados de comunistas e são perseguidos por saberem que a vida é um desafio constante ao sentido de ética e de humanidade. Benditos os comunistas que lutam contra as desigualdades. Benditos os que sofrem por desejarem um mundo melhor.

 

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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