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Ser Pinóquio no mundo da pandemia

Gislaine Marins

Imagine um país onde não se vai à escola na quinta-feira e a semana é composta por seis quintas-feiras e um domingo. Este lugar saiu da pena criativa de Carlo Collodi, autor de As aventuras de Pinóquio, um romance para a infância carregado de elementos relevantes para ser limitado por etiquetas definitórias. A história é célebre o suficiente para que voltemos apenas a alguns episódios como o País dos Brinquedos, onde Pinóquio é transformado em jumento depois de cinco meses de pura diversão.

Vale a pena voltar, por exemplo, às razões que levam o Mestre Gepeto a escolher o nome da sua marionete. Ele tinha conhecido “uma família inteira de Pinóquios: Pinóquio pai, Pinóquia mãe, Pinóquia filha… o mais rico da família era miserável”. A marionete de Gepeto é feita de madeira de pinheiro, de baixo valor para se transformar em móvel, e esta é uma das alusões sugeridas pelo nome Pinóquio, ou Pinheirinho, em tradução livre. O nome também sugere os nós da madeira do pinheiro, de desvalorizam o produto e que se parecem com olhos, então Pinóquio também poderia ser entendido como Olho de Pinheiro, um olho que vê mal a sua realidade, como atestam as várias peripécias da marionete que quer se transformar em menino sem o esforço de estudar e aprender com a realidade. Por fim, Pinóquio também pode recordar o apelido Pino, diminutivo de Giuseppe, Zezinho em português. Pinóquio é um zé-ninguém, um miserável, que vai de um estado desumanizado à conquista da sua humanidade: pela escola e pela compreensão da sua condição.

No mundo da pandemia, ser Pinóquio significa enfrentar desigualdades crescentes, onde muitos não percebem que o mundo está cheio de gatos e raposas a enganarem com falsas promessas os Pinóquios prontos a sonhar com uma vida menos dura, como na narrativa de Collodi. Está cheio de Comem-fogo, diretores de um circo dos horrores não apenas para crianças, mas também para adultos. Está cheio de pilantras e inescrupulosos, capazes de explorar o desespero e a esperança das pessoas com propostas perversas, que destroem o que afirmam salvar. Pinóquio é um mundo.

Um mundo: é o modo como defino o meu bairro, aqui em Roma, quando me perguntam como é viver aqui. Temos tudo: da escola ao hospital, o metrô, o trem urbano, o supermercado, o centro cultural, o armazém, as ruínas romanas, a farmácia, o parque. E temos: as pessoas, o convívio, as comunidades estrangeiras, a vida.

No início, comparava a minha nova realidade com o meu bairro em Porto Alegre, onde eu dizia que a gente podia nascer, crescer e morrer. Por muito tempo eu disse: no meu bairro romano só não tem cemitério, mas isso é verdadeiro até certo ponto, já que temos a maior catacumba do mundo, a mais preservada, a menos conhecida e, talvez por isso, a mais preciosa.

Todas essas características levaram uma associação de moradores do bairro a pleitear o reconhecimento do bairro inteiro como um ecomuseu, no qual o seu sistema histórico, social, cultural e antropológico é considerado uma realidade complexa e indivisível. Não podemos separar a história das migrações e das ocupações do território da sua feição urbana. Não podemos separar o sistema de transporte do cooperativismo dos trabalhadores ferroviários para a construção das suas casas, hoje um verdadeiro tesouro arquitetônico na zona. Assim como não podemos separar a história dos trabalhadores dos eventos da Segunda Guerra Mundial, que acabaram atingindo-os por serem sindicalizados, politizados, mas também apenas por serem pobres e estarem nesse espaço de disputa pela vida e pela morte, frequentemente manipulado por interesses espúrios, autoritários, ditatoriais. Os Comem-fogo estão sempre no calcanhar dos Pinóquios.

Quando a epidemia chegou por aqui, os primeiros atingidos pela atenção dos jornais foram os membros da comunidade do Bangladesh. O bairro entrava oficialmente nas estatísticas da covid. Entratanto, o bairro já estava sob a atenção das autoridades, que tinham reservado uma ala do hospital aos doentes que necessitavam de internação. Por meses, nas poucas vezes que saímos para fazer alguma compra essencial, passava pelo hospital e via um cordão de isolamento do qual só se aproximavam ambulâncias e carros fúnebres. Depois, a epidemia foi chegando mais perto da minha realidade pessoal e pude constatar que a doença não aplacou a solidariedade. Mais de um conhecido relatou a disponibilidade de amigos e comerciantes para permitir que o isolamento social fosse cumprido. Dezenas de mensagens chegam aos contagiados e aos familiares quando alguém é atingido pela doença, mostrando que o espírito de comunidade está vivo e aquece os nossos corações.

Todos os acontecimentos dos últimos meses colocaram os nossos sentimentos em uma gangorra, na qual oscilávamos entre a apreensão e o alívio, a esperança e o pessimismo, a alegria e o pesar. Achei que já tinha visto e sentido tudo, acompanhando as estatísticas, as notícias e observando a minha realidade. Mas o tempo sempre é capaz de comportar novos desesperos. Passando pela frente do hospital dias atrás, vi a porta da ala covid aberta. Um médico, usando máscara, viseira protetora e macacão hermético conversava com algumas pessoas na rua. Ao passar por eles, percebi que eram parentes de um enfermo e o médico tentava convencê-los a ficar em casa e a aguardar notícias. Mas o que mais me desolou foi ouvir os gritos dilacerantes dos doentes, que não atravessam as grossas portas de metal, quando estão fechadas.

Entendo que algumas pessoas não acreditem na existência da covid. Entendo. São como Pinóquio, ingênuas, que creem no País dos Brinquedos. É um lugar que não existe, como não existe destino que não se possa transformar.

Como Pinóquio, as pessoas também podem mudar, mas a gente espera que seja por meio de um percurso diferente do que nos apresenta a ficção. Que seja pela informação, pelo conhecimento, pelo bom senso. Não há sentido em esperar que sejam as desaventuras a ensinar a chorar. Bastaria ouvir, ver e compreender para aprender a comover-se. Bastaria abrir o coração para se tornar um mundo para os outros, para ter braços de acolhida e de proteção. Bastaria sensibilidade para ter o olfato que nos faz sentir o perfume da vida, que retorna a cada primavera. Bastaria paciência e ponderação. Bastaria uma mente aberta para que a boca calasse diante da tragédia que atinge milhões de pessoas.

 

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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