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O falso, o plausível e o substancialmente verdadeiro

Gislaine Marins

 

Sonhei que tinha ido fazer uma caminhada à beira-mar. Não era o mar Mediterrâneo, ao qual já acostumei o arrepio do meu corpo, mas o mar gelado, de ressaca, com a maresia e o vento forte que conhecemos no litoral no sul do Brasil. A praia estava deserta. Acordei com saudade, este sentimento concreto, que apalpa as nossas lágrimas. Percebi que provavelmente por muitos anos não poderei tocar essas paisagens com meus pés descalços e que, ao contrário do que tentei sempre me convencer, a lembrança não basta. É preciso o tato, o contato.

É preciso provas. Acho que sonhei com a praia deserta porque ando preocupada com as fakenews. Acho que sonhei com isso porque nós, especialistas em ficção, não podemos ficar de dedos parados diante das barbaridades que escrevem na base de suposições.

Sim, todo mundo já falou sobre o vírus. Políticos, cientistas, jornalistas, pastores e todos os quaisquer-um que acreditam que o direito à palavra é autoridade epistemológica e que opinião tem status de conhecimento. Nós, que somos autoridades naquilo que é falso, inventado e verossímil, não podemos falar sobre o vírus, mas devemos falar sobre as falsidades que criam ao redor do tema.

Sobre o vírus há algumas teorias totalmente falsas. Para descobrir se algo é falso, basta verificar a existência de provas. Não há provas: há hipóteses e probabilidades. Bem, hipóteses e probabilidades são matéria de ficção. E aqui é preciso fazer uma distinção: jornalismo investigativo apresenta provas, opinião constrói hipóteses onde não há provas suficientes. Flerta com a ficção. Em relação ao vírus, cuja origem não pôde ser provada até agora, que pegou a comunidade científica despreparada para detê-lo e para o qual ainda não foi encontrado nenhum remédio bastante eficaz, bem, em relação a isso temos lido mais ficção do que artigos jornalísticos investigativos.

Sobre o vírus as hipóteses plausíveis mais alimentam a polêmica do que a ciência; mais ajudam a roteiristas de séries televisivas do que a governantes com reais responsabilidades. É que na ficção as personagens morrem de mentirinha, na vida não.

Sobre o vírus não encontrei nada de substancialmente verdadeiro até agora, além do sequenciamento do seu genoma. Nós, especialistas em mentiras propositalmente criadas para deleitar o público e estimular a sua reflexão, estamos preocupados com isso. Nós que estudamos o pós-modernismo, um período que questionou o conceito tradicional de ironia, paródia, intertextualidade e outros instrumentos linguísticos que contribuem para problematizar aquilo que consideramos real e verdadeiro, sabemos bem que a busca do substancialmente verdadeiro é frequentemente ilusória. Pior, com maior frequência é uma operação construída propositalmente para iludir. Precisamos, como profissionais da área, avisar sobre isso.

Há muita leitura que pode ser feita para treinar o nosso desconfiômetro em relação a histórias mal-contadas. Esta semana estava lembrando de alguns autores que estimulam por meio da sua escrita o questionamento daquilo que consideramos um dado de fato: Rubem Fonseca, em Agosto, por exemplo. Pensei em Umberto Eco, lembrei de todos os poetas trágicos, que desvelam ao público o grande engano no final e causam aquela sensação de horror que chamamos de catarse. Textos como Édipo Rei, Tiestes, Antígona podem ser lidos gratuitamente por serem de domínio público. Esta semana lembrei de Shakespeare, de Rei Lear, por exemplo. Lembrei de Erico Verissimo, que escreve uma nota na abertura de Incidente em Antares, para que não haja equívoco:

“Neste romance as personagens e localidades imaginárias aparecem disfarçadas sob nomes fictícios, ao passo que as pessoas e os lugares que na realidade existem ou existiram, são designados pelos seus nomes verdadeiros.”

A literatura tem muito a dizer sobre o modo como temos enfrentado o vírus. Sobre as nossas limitações para interpretar, escrever ou ler sobre o que tem acontecido. E nós, especialistas em ficção, temos o dever de advertir dos perigos e dos remédios que a linguagem oferece. Espero ter, singelamente, cumprido o meu dever esta semana. Aproveitem a quarentena e leiam, mas leiam criticamente. De personagens iludidas a literatura também está cheia. E a vida ainda mais, porque é necessário lembrar que a literatura é apenas imitação da vida. A realidade é sempre mais intensa e pior do que as invenções que nascem na cabeça dos escritores. E as fakenews são sempre piores que a literatura, porque pretendem substituir a realidade, quando são apenas más narrações.

Sonhei com o mar esta noite. Não era o mar, claro. Era uma ideia de mar, sem temperatura, sem o fresco da noite batendo no meus rosto e subindo pelos meus pés. Há gente sonhando com o vírus, cuidado. Vacinem-se contra a ilusão com bons livros. E lembrem de ficar em casa: é a única medida de massa que se mostrou eficaz até agora. Na UTI todos os epílogos são possíveis e nem todos têm final feliz. Sonhemos para rever o mar e façamos o necessário para que isso volte a acontecer de verdade, em segurança, a salvos.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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