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Horror da cultura

Gislaine Marins

Um filme de horror começa em uma situação de absoluta normalidade. As pessoas estão no trem, como todos os dias. Chove. Como em qualquer outono. O trânsito está congestionado como qualquer fim de tarde. Uma pessoa com feições comuns começa a bater no chão com o cabo do guarda-chuva, como se estivesse passando o tempo. Como se estivesse distraída. Como se estivesse nervosa. Nada deve levar a crer que algo excepcional esteja para acontecer.

Por isso, a realidade não é um horror, embora a gente use essa palavra como lugar-comum. Não é um horror a Cultura ter sido reduzida a Secretaria do Ministério do Turismo: é um projeto de demolição das estruturas do Estado, que se articulou em várias fases. Primeiro, acabaram com o Ministério. Depois, transformaram em Secretaria do Ministério da Cidadania. Agora passou para o Turismo. A Cultura já está estacionada no segundo ministério, sob o comando do segundo secretário em menos de um ano. Histórias como essas vão sendo destruídas, tijolinho após tijolinho, dia após dia, para melhor anestasiarem as nossas pupilas. Ao final, a gente vai assistindo à cena como quem vê novela. Não, não é um horror. É decadência.

A cultura também não é um monstro. Mas assusta quem não tem familiaridade com a complexidade. Para lidarem com isso, submetem-na ao método dos predadores, que se vingam, com as amarras da burocracia, daquilo que não conseguem controlar. Reservam à cultura o espaço de souvenir de feira neoliberal na qual transformaram o país. Isso não surpreende, não maravilha. É normal que trate dessa forma a cultura quem aborda com temor e raiva o seu ecossistema. Nesse contexto, é previsível encontrar gestores - palavra mágica para quem evita falar de suas competências específicas – que tratem a arte como lembrancinha: objeto que nem pode ser comparado ao artesanato, forma popular da cultura, assim como as formas do folclore. A destruição das estruturas governamentais da cultura passa pelo simplismo disfarçado de economia da simplicidade.

Esta exposição do poder de demolição, submetida com violência aos olhos de todos, sem o pudor dos que temem o vexame e a vergonha da própria insipiência, exclui que a realidade possa ser comparada a um filme de horror. A sequência dos fatos aproxima o modelo do roteiro aos filmes pornográficos. E isso não tem a ver com as obsessões fálico-religiosas expressas por expoentes da antipolítica, mas com o conceito de Umberto Eco, quando explica que uma narrativa pornográfica é aquela que conta tudo nos mínimos detalhes, mostrando cada momento - especialmente os mais banais, inúteis, dispensáveis e honestamente irrelevantes - e criando, dessa forma, uma tensão que não melhora a história, mas a degenera.

A Secretaria da Cultura no Ministério do Turismo é uma degradação que nos deixa rubros de vergonha, mas não nos deixa perder por um instante a certeza de que a cultura não morre. Podem tentar esquartejá-la diante do público, podem tentar vilipendiar o seu papel, podem espernear diante dos seus maiores artistas e insultá-los de forma impudica, mas não podem sufocá-la por decreto.

A Secretaria da Cultura está no lugar mais inadequado que poderiam encontrar. Ou adequado para chegar aos seus objetivos nefastos. Se tivessem colocado sob o Ministério da Agricultura não seria tão grave, pois seria simplesmente ridículo. Apesar disso, o objetivo desta reflexão não é lamentar a transferência da Secretaria da Cultura depois que eliminaram o Ministério. O objetivo é falar do homem que bate com o cabo do guarda-chuva no chão.

Ele incomoda. Enquanto as pessoas estão preocupadas com os seus problemas cotidianos, enquanto o maquinista tenta cumprir o seu trajeto, enquanto as mães correm para as suas casas, enquanto os estudantes animam o vagão com os decibéis do entusiasmo, enquanto o operário suspira a sua frustração, enquanto o desempregado olha para fora da janela com os olhos vazios, o homem com feições comuns bate com o cabo do guarda-chuva no chão. Sempre no mesmo ritmo. Aparentemente previsível. Aparentemente inofensivo. Aparentemente irrefreável. Aparentemente imperceptível.
O cabo do guarda-chuva batendo no chão parece pingo da chuva batendo na janela. Mas os mais atentos perceberão que é outra coisa. Como a cultura: uma outra coisa incontrolável, embora a Secretaria queira transformá-la em recordação de bazar. A cultura é o horror apenas para aqueles que, cientes da própria pequenez, sabem que não podem imaginar os infinitos epílogos de uma história que começa com o som de um cabo de guarda-chuva batendo no chão. E que pode ser horror ou tragédia, drama ou comédia, amor ou fábula. Ou simples crônica do cotidiano. A cultura é mais que uma Secretaria. Sabem disso. E isso é assustador.

Desço do trem. O homem bate nervosamente o cabo do guarda-chuva no chão. A condução segue sobre os seus trilhos. E aos leitores cabe inventar o final da história. Da sua própria história. A cada pessoa cabe construir a cultura, apesar das Secretarias, dos gestores, dos tempos.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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