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Conversa de Barzinho

Gislaine Marins

“Conversa de Botequim”, além de ser um célebre samba de Noel Rosa, também é um fenômeno social dos mais sérios na nossa cultura. Botequim é lugar de contar segredos, de transformar garçom em amigo, de ficar devendo na base da confiança, sem juros e sem agiotagem, é lugar de chorar as mágoas, de cantar vitória, de jurar revanche, de fazer planos impossíveis e de amargar traições.

Botequim não existe mais.

Hoje existe “barzinho”. Existem até amizades, existem até aqueles que a gente prefere em lugar de outros, mas perdemos a espontaneidade, perdemos a confiança e os critérios. O barzinho reflete os nossos tempos, marcados por desinformação, fofoca, difamação. As redes sociais transformaram-se em bares virtuais, em que se pode falar qualquer coisa sem assumir a menor responsabilidade. Tudo se transformou em papo-furado de barzinho, sem a categoria dos antigos botequins e sem o rigor da informação averiguada nas fontes. O “ouvi dizer que” vale quanto uma tese de doutorado. Argumentações são desancadas por opiniões infundadas. É o barzinho da vida. O engano está a cada esquina.

Hoje ouvi uma dessas conversas. Foi pelo rádio, contagiado pela cultura da pressa. Não posso afirmar com cem por cento de certeza, não sendo especialista na obra de Paulo Coelho, mas acredito que ele foi mais uma vítima da conversa de barzinho. Não me supreendo, anos atrás, ao apresentar a sua renúncia, um ministro italiano leu um texto de Martha Medeiros achando que era Pablo Neruda. Eu estava vendo a transmissão televisiva e disse na hora: que gafe! Eu lembro de ter lido este texto anos atrás no jornal onde a Martha assinava uma coluna.

Pois bem, hoje foi a vez do Mago. Já vi inúmeras vezes acontecer com Clarice Lispector, com João Guimarães Rosa, com Luis Fernando Verissimo, a lista é longa. Bastaram poucos minutos para encontrar dois livros em que o texto, em tese de um autor desconhecido, é citado exatamente com a mesma fórmula da recitação desta manhã.

E qual é o problema? Afinal, não podemos compreender que todo mundo se equivoca? É claro que sim, desde que o equívoco não se transforme em sistema. A nossa superficialidade, a nossa mania de retórica vazia, acabou com a nossa humildade, com a nossa curiosidade e com a nossa responsabilidade. Aceitamos as coisas por ouvir dizer, transformamos em realidade qualquer invenção, reservamos deferências a autores que nunca escreveram certos textos e que, no melhor dos casos, foram escritos por outros escritores. Shakespeare é um desses casos: suas frases geniais com frequência são tomadas por lugares-comuns por quem nunca pisou em um teatro. E não falo de pessoas que não puderam estudar, mas daquelas que transformaram o estudo num exercício de alpinismo para ganhar um lugar ao sol. Não se estuda para compreender fenômenos, amizades, botequins e nem mesmo a vida. Estuda-se apenas para obter uma vaga, para exercer um trabalho e, quem sabe, para humilhar com frases-feitas quem demonstra maior ignorância.

Esse sistema de desorientação estrutural é parte da nossa desgraça. Somos facilmente manipuláveis: por ministros que acreditam ser eruditos ao citar um Neruda inexistente, por jornalistas que citam um Paulo Coelho mais fantástico do que o seu epíteto. Se as pessoas com poder e saber fazem isso, instrumentalizando a reputação dos escritores, imaginem o que fariam com os seus desafetos e com os seus adversários políticos. Todo lawfare começa numa mentira e termina em um processo farsa. Todo golpe começa com ameaças infundadas para legitimarem os seus delírios de poder.

Nem sempre é fácil discernir entre aquilo que é justo aquilo que é apresentado como legal. Mas uma coisa é certa: se alguém que se define culto não souber citar os últimos livros que leu, pode estar certo de estar diante de um falastrão digno de uma conversa de barzinho. O problema é quando não somente damos ouvidos aos tolos, mas os transformamos em ídolos.

Ah, saudades do botequim. 

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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