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Centão do amor

Gislaine Marins

A literatura apresenta dois grandes temas: o amor e a guerra. Há também um terceiro: a viagem, metáfora do próprio viver. Mas voltemos aos dois primeiros. Enquanto os aspectos sociais relacionados à guerra são evidentes, o tema do amor pode ser considerado, muitas vezes, algo pertencente à esfera individual e subjetiva. Não é exatamente assim, ou não é apenas isso. Para mim, o amor é o sentimento mais poderoso que existe. As minhas convicções foram recentemente reforçadas por uma releitura do tema do amor na filosofia, feita pelo professor e jornalista italiano Pietro Del Soldà. Cito, com a minha tradução, a perspectiva que o autor dá à questão:

“Sócrates, a um certo ponto do Simpósio, diz que ele ‘só entende de coisas de amor’, dando a eros, o amor, não um significado romântico e privado que atribuímos hoje, mas um bem mais amplo, que chega a abarcar tudo: que se fale de política ou de justiça, de democracia ou de tirania, de beleza ou de virtude, de verdade ou falsidade, para ele tudo é uma coisa de amor”.

O amor é tudo porque move, cria, inspira, e a literatura oferece muitas sugestões nesse sentido. O tema é relevante sempre e hoje ainda mais, nessa realidade de ódio, de guerra ao conhecimento e de destruição que vivenciamos. Por isso, proponho um centão do amor. Centão é uma composição formada por fragmentos de poemas de vários autores, um pot-pourri lírico. Não costumo recorrer a esse tipo de estrutura com frequência, mas o tema do amor vale o risco. A ideia é juntar várias passagens, sem mencionar os autores, e deixar ao leitor um mosaico sugestivo sobre o alcance desse sentimento que há milênios está presente nas representações artísticas de diferentes culturas.

O amor vence tudo

Se te amo, e não te custa,

Perdoa-me, como eu, a tanta angústia:

O amor é um fogo que arde sem se ver.

Se falo na Natureza não é porque eu saiba o que ela é,

Mas porque a amo, e amo-a por isso:

Sobram perfumes – e não falta amor!

 

Sombras de amores:

Uma vez amei, julguei que me amariam,

Mas não fui amado.

ah PORQUEAMOU

e se queimou

todo por dentro por fora nos cantos nos ecos

lúgubres de você mesm (o,a)

irm (ã,o) retrato espéculo por que amou?

 

Tudo quanto há de vil, quanto há de belo,

Tudo era nosso irmão! – E assim sonhando,

Pelas estradas da Umbria foi forjando

Da cadeia do amor o maior elo!

 

Neste dia claro, em que descansa

Tua carne de quimeras e amores,

O amor indefeso vence.

 

Amo uns suspiros quebrados,

Mas no coro de vozes que ressoam como um mar sepultado

Não está aquela voz de folha sombria sempre dilacerada pelo amor ou pela cólera.

Um desolado labirinto nasce

Perdida fábula de amor te chama:

Não conheço nada do país do meu amado

Não sei se chove, nem sinto o cheiro das laranjas.

 

E o Amor? E o Amor? E o amor?

- : Vieste.

Pois só quem ama pode ter ouvido.

Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.

Não me falou em amor. Essa palavra de luxo.

 

Composto o mosaico, já nem sei quantos poetas mencionei: Drummond, Guimarães Rosa, Antonio Machado, Virgílio, Camões, Alberto Caeiro, Florbela Espanca, Ana Paula Tavares, Sebastião da Gama, Giovanni Quessep, Olga Orozco, Adélia Prado e outros. Sei, no entando, que gostaria de ter citado muitos mais. Sei que o amor subjaz as nossas ações e as nossas escolhas, sei que o amor é o filtro para ver paisagens e para aceitar derrotas. O amor é a força que nos permite recomeçar a cada queda e exige a nossa coragem a cada obstáculo. É com amor que saltamos os muros e socorremos quem precisa de ajuda. É com amor que melhoramos o mundo. É com amor que choramos as vidas perdidas. É com amor que defendemos a justiça. É o amor que nos pede paciência. É o amor que ensina a conviver. Porque ninguém ama sozinho. A gente pode amar à distância, pode amar por muito tempo, pode amar platonicamente, pode amar com paixão, pode amar com entusiasmo, mas não sozinhos. O amor é sempre plural, é sempre vida. É o contrário daquilo que temos vivenciado cotidianamente. Não nega, constrói; não incita, compreende; não exclui, acolhe. É aquilo que não sendo eterno, é infinito, como no poema de Vinícius de Moraes.   

 

 

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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