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Vida de cão

Gislaine Marins

Eu queria me chamar Souza Dantas, mas a verdade é que me chamo Gislaine. E levo uma vida de cão.

É o que as pessoas chamam de vida boa: casa, comida, roupa lavada. Sim, eu não lavo roupa, quem faz isso é o meu marido. Realmente, sou tratada como um animal de estimação.

Tenho um trabalho digno, tenho amigos fiéis e procuro estar à altura, como bom cachorro, da confiança que têm em mim. Dia de sol é dia de festa. Como um cachorro bem adestrado, coloco a minha máscara e posso ir para a rua. Sou bem comportada, não mordo as pessoas e chego mesmo a dizer aos puxam discussão: ora, não vamos brigar por isso.

Sou especialista em palavras redondas, que não agitem a sensibilidade alheia. Vivo naquele limbo hipócrita que leva as pessoas a pensarem: será realmente tão contida como um cão de guarda? Será capaz de atacar para defender o seu patrão? Vida de cão também tem as suas ambiguidades. O que falta na vida de um cão é o desafio, o critério  e a coragem: para aceitar a luta, escolher a força, fazer o impossível. Coisas que apenas dando um mergulho na nossa humanidade podemos conquistar. O que falta da vida de um cão é a consciência do risco, o peso da responsabilidade e o medo diante dos caminhos que ainda não foram trilhados. O que falta a um cão é saber que a impotência é uma reserva de ousadia. O que falta para um cão é entender que Souza Dantas não era um super-herói, mas um homem.

Quando a gente lê o percurso de grandes personagens da nossa história e da história mundial, tende a esquecer que homens enfrentam dilemas, possuem sonhos - aparentemente irrealizáveis -, alimentam ambições que podem salvar o mundo e condenar a si mesmos. São conjecturas que apenas com a consciência de humanidade podem-se fazer. Há homens, por outro lado, que vivem na dimensão das suas limitações, das imposições que lhes são feitas, das suas frustrações cotidianas. Sobrevivem, sem salvar a si e sem salvar ninguém. Vivem sem ter nem mesmo as pequenas alegrias de um cachorro bem tratado pela família.

Há homens que vivem a sua vida como se fosse única, não apenas por si mesmos, mas na relação com os seus pares. No entanto, somos uma sociedade violenta e individualista, que exalta o sucesso pessoal, desconsiderando que certas escaladas comportam a ruína alheia, efeito de um alpinismo associal incapaz de abarcar o coletivo. Somos uma sociedade que exalta bandeirantes que mataram milhares de indígenas em suas aventuras colonialistas. Estamos dispostos a admirar quem sobe as escadarias da sociedade, ainda que isso custe condições de vida indignas para os seus empregados. Estamos dispostos até mesmo à condescendência para com quem mantém pessoas em condições análogas à escravidão em suas residências. Afinal, em nossa distorção hipócrita da realidade, a escravidão não exclui que patrões nutram afeto pelas pessoas exploradas. Podemos chegar ao ponto de considerar ingrato quem reivindica direitos por sentir pena de quem terá de abrir mão de algum privilégio. Pelo contrário, tendemos a reduzir qualquer qualidade pessoal e ação individual que possuam repercussão coletiva ao estereótipo da rebeldia e da desobediência contra a ordem estabelecida. Talvez não se pense que a ordem estabelecida é por vezes a lei da injustiça.

É uma pena que Souza Dantas não seja conhecido por seus compatriotas como é reconhecido pelo mundo: um justo entre os homens. Foi capaz de arriscar a sua carreira e de desafiar o governo que representava para salvar vidas e entrar no livro da história do mundo. Graças a Souza Dantas, o Brasil contribuiu para salvar pessoas perseguidas pelo nazifascismo durante a II Guerra Mundial. Graças a outros excelentes brasileiros da nossa história, o nosso país ainda não foi retirado completamente do mapa da ética.

Nessa impotência canina que me assola, pergunto-me quantas palavras serão necessárias para ferir sensibilidades, para desacomodar quem me lê num brio de orgulho pela sua condição. Não, não vamos brigar por isso. Quem vive uma vida de cão bem pode fazer um esforço, se quiser, para entender quem luta com mil dificuldades para sobreviver na pior fase da história da nossa geração. Também pode sonhar. Dizem que até os cachorros sonham, não apenas os homens. E o sonho é o primeiro passo para sair da própria realidade e construir um novo mundo. Humano, quem sabe.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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