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Sopra o vento, labirintos

Gislaine Marins

 

Para quem vem de uma terra que trata os ventos por nome, Roma, embora labiríntica, parece bidimensional. Aqui há apenas dois ventos importantes: o vento de tramontana, que sopra no inverno, e o vento que joga a areia do Saara sobre os automóveis e não se chama reconvexo, mas siroco. Vento forte é coisa rara. Por isso, quando a ventania bateu no sábado, lembrando o tempo de Erico Verissimo, a conversa com meu amigo budista não poderia começar por outro ponto. Com a ironia dos sicilianos que melhor se afina à nossa alegre melancolia, ele comentou:

"O vento está mudando!", sorriu e perguntou: "Estamos falando de política?"

"Claro que sim, ou seja, claro que não."

Em Roma, um dos slogans da última eleição era justamente: "o vento está mudando". A candidata vencedora prometia mudar tudo. Bem, no sábado o vento realmente surpreendeu, derrubou árvores, assobiou, feriu, assustou. É uma forma de mudar, ninguém disse que seria para melhor. 

Como disse, meu amigo é budista, mas falávamos de política, ou seja, de ventos que mudam. A ironia funciona pelo não dito. De fato, ele me disse, olhando nos meus olhos: "Veja, o meu percurso no budismo tem a ver com a esperança. Dentro de cada um de nós há algo divino, por isso eu acredito que a transformação começará em cada um de nós. O divino emerge, transforma". Do lado de fora, o vento arrastava as cadeiras do jardim.

Ouvia isso e vinha à minha mente o Liso do Sussuarão: a travessia, o percurso, o vento assobiando sugeria redemoinhos. Riobaldo se perguntava, mas sobre o mal: onde ele se aninha? Concordamos com os objetivos, por outros meios, por outros caminhos. Essa é a beleza do encontro: meu amigo busca a divindade e eu o humanismo. Ele busca a harmonia e a beleza, eu me atormento pelo mal que entra pelas frestas, que se oculta nas nossas entranhas e se esconde da nossa consciência, buscando falácias, justificações, subterfúgios e auto-engano. A vida é o nosso labirinto: percorrê-lo pode ser uma jornada no pampa, no sertão ou nas ruas de Roma. Perder-se e achar-se é a nossa sina, insistir é a nossa força. Entender a intimidade dos ventos é a nossa sabedoria. Acolher o minuano da nossa vida, ou o vento de finados, ou o nordestão, é aprendizagem necessária. O labirinto está fora e principalmente dentro de nós. 

Indo para centro de Roma, encontrei árvores caídas pelo caminho. Parei na sinaleira: uma jovem passou por mim falando ao telefone, puxando uma mala e chorando. Outra jovem, como uma moderna ateniense no labirinto de Cnossos, tentava chegar a uma praça que o vento tinha castigado. Circular, a praça dá acesso a várias ruas como raios por onde se perder ou fugir. 

O vento cessou. A risada emudeceu. As lágrimas caíram enquanto a moça atravessou a rua. O tempo passou. O vento mudou? Talvez, mas é um sopro leve, inspirador, embrionário, sempre presente, enquanto estivermos vivos e tivermos a pretensão de dar sentido ao caminho, às perguntas, ao tempo. Sopra o vento, labirintos.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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