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Os peixes não conhecem o paraíso

Gislaine Marins


No fundo do Mar Mediterrâneo, durante uma operação de busca de imigrantes afogados enquanto tentavam desembarcar na Europa, foi encontrado o corpo de um jovem já muito consumido pela voracidade dos peixes e pela ação da própria água. Mas antes de ser devorado por criaturas marinhas, o rapaz já tinha sido corroído na sua dignidade e na sua expectativa de futuro. Quem se embarca já foi ferido pelo medo, pela exploração, pela violência, pela falta de um presente. Leva no corpo apenas a esperança.

Quando levados para a identificação, os legistas se valem de tudo para tentar dar aos mortos um nome e às mães o consolo de uma resposta, enquanto elas nunca cansam de esperar um milagre. Um filho desaparecido é um filho pelo qual é proibido vivenciar o luto. Um filho desaparecido é um hiato na existência, é a morte do tempo, congelado, à espera de respostas. O legista atesta a fatalidade, legitima o pranto e a dor.
O que sabem os peixes sobre isso? Sobre a dor, sobre a memória, sobre o tempo eterno? Os peixes só conhecem a fome e por isso não conhecem o paraíso.
A eternidade tem muitas formas. Eu me limito a concebê-la como capacidade de memória, que vai além de nós mesmos. A eternidade está nos nomes, nos documentos e nas palavras. Não está na fome que passa, não está no impulso irrefletido, não está na voracidade que se apresenta com muitas máscaras. A eternidade às vezes ocorre por paradoxo: numa injustiça registrada nos autos, num laudo de autópsia. Às vezes fica registrada numa crônica, às vezes nos arquivos. E sempre na memória das mães.

O jovem foi encontrado e seu corpo reconhecido: ele carregava, costurado à roupa, dentro de um saco de plástico, à prova de intempéries, de naufrágios e de todo tipo de violência, o seu boletim escolar. O jovem vinha para a Europa com o sonho da palavra, do conhecimento, única eternidade possível em nossas vidas precárias. Porque a palavra não morre e a memória não se apaga.

Os peixes não conhecem o paraíso: andam em cardumes, seguindo as correntes, a fome e o instinto. Navegam, enquanto são navegados, porque não sabem que estão a navegar. 

Eu sou uma pessoa otimista, porque acredito nas palavras, não me deixo navegar pelos impulsos. Creio na eternidade e na saudade das mães. A recordação supera a distância e até mesmo a morte. A palavra e a memória nos tornam eternos. Eternos humanos. Todos podemos ser: eternos e humanos, desde que paremos de agir como peixes devoradores.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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