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O pão de cada dia

Gislaine Marins

Roma oferece neste verão um cenário surreal. Há raros turistas pelas ruas e a maioria dos romanos estão prontos para abandonar a cidade – como acontece todos os meses de agosto. Restam duas categorias: os que ainda estão trabalhando e alimentando um pouquinho o trânsito nos horários em que normalmente há congestionamentos estressantes e os que passam o dia todo com as janelas fechadas para se defender do calor e descem às praças ao fim do dia para pegar um ar fresco e exibir as suas máscaras.

Nesses dias dá para ver a Fontana di Trevi como se fôssemos visitantes especiais, dá para comer uma pizza sem ser expulso pela fila de clientes à espera da sua cadeira. As gaivotas andam mais audazes do que nunca, achando que todas as pontes e os telhados são de sua propriedade exclusiva.

A crise é dura, mas Roma renasce. Cidades não morrem, a menos que as pessoas decidam matá-las, a menos que os terremotos prevaleçam sobre a tenacidade dos habitantes. A menos que a falta de políticas decida asfixiar e expulsar os seus residentes.

Roma Antiga, que parece mais viva do que nunca nesses dias de ausência dos atuais moradores, garantia a sua vitalidade transformando as províncias em celeiros para abastecer os seus cidadãos. Todo romano tinha direito a uma cota de trigo, que garantia o pão de cada dia: misturando devidamente política e religião, o suprimento ocorria graças a armazéns usados para a correta distribuição e que eram dedicados à deusa Anona, padroeira da abundância.

Ao longo do tempo, Anona virou sinônimo de “departamento da fazenda”. Lendo uma poesia do poeta Giuseppe Gioachino Belli, descobri que, no início do século XIX, Roma ainda contava com um responsável pela Anona, o Conde Mangelli, que administrou a alfândega do Estado Pontifício e também o centro de distribuição. Belli, na poesia “Campa, e llassa campà” (Vive e deixa viver), por meio de metáforas que comparavam Roma a um bosque dominado por ladrões, reclama pelo modo como os desgraçados são tratados. Diz que colocaria os cérebros de volta na cabeça de quem comanda e diria de modo direto: “façamos viver os pobrezinhos”.

Roma sobreviveu e as palavras de Belli, em perfeito dialeto romanesco, como usava o povo então, continuam ecoando para lembrar a quem governa que mais do que deusas, precisamos de políticas para que as cidades não morram. Precisamos de cérebros à cabeça dos postos decisionais.

Roma vai ressurgir de máscara, mas isso não basta para conter o monstro invisível. É preciso conhecer as lições da história para enfrentar os desafios do futuro. A Itália ainda sofre muito com a sonegação fiscal e com o peso da carga tributária. Hoje ouvi uma notícia que tenta enfrentar os dois problemas: em vez de taxar o consumo, o pagamento por meio de cartão será premiado. O consumidor irá ganhar pagando de forma identificável pelo sistema tributário e, ao mesmo tempo, tenta-se dar um incentivo concreto para a retomada das atividades comerciais.

Obviamente, esta é apenas uma das inúmeras medidas de assistência social, proteção dos postos de trabalho, financiamento às empresas e incentivo ao consumo que estão sendo implementadas aqui. Seria uma covardia tentar comparar com o que está acontecendo no Brasil, onde não vemos políticas, a religião é usada de forma instrumentalizada para enriquecer alguns pregadores e o pão na mesa do pobre não se vê há muito tempo: uma ação aparentemente determinada a matar o nosso país.

 

 

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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