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Morrer para dentro

Vanildo Luiz Zugno

 

Os números nos excedem. São tão monstruosos que ultrapassam nossa capacidade de mensuração. Não é que não saibamos mais contar ou que dois mil, três mil, quatro mil ou quatrocentos mil sejam quantidades que já não nos dizem nada. Nosso cérebro conta. Mas ele não consegue mais processar o que significa tal quantidade de mortos. A cifra e a dor embutidas nela são de tal monta que a única defesa é o anestesiamento auto infligido. Um anestesiamento emocional para poder suportar a dor e a vergonha de uma sociedade que se permite a morte das pessoas mais frágeis.

A eutanásia é algo não admitido pela maioria das pessoas em nossa sociedade. Muito menos a eugenia e o extermínio dos fracos e indigentes. Na história da humanidade, apenas regimes totalitários adotaram tais práticas. E as pessoas que lideraram tais processos genocidas são hoje apresentados como excrecências históricas. No entanto, o modo como está sendo abordada por alguns líderes brasileiros a crise da Covid19 faz com que nos coloquemos interrogações sobre as reais intenções que os animam. Quando um prefeito de uma capital apela a um cidadão para que “contribua com sua vida para que a gente salve a economia”, estamos muito perto da barbárie.

O peso é tanto, que muitos já não o suportam. A dose de autoanestiamento exigido para poder suportar o absurdo civilizatório em que fomos jogados é tão pesada que muitos já não conseguem emergir das trevas que nos rodeiam. São poucas as manchetes dos jornais e os espaços televisivos e radiofônicos que tratam de tal assunto. Mas cada um de nós – feliz de você se não está neste número – sabe de um familiar, amigo ou conhecido que, em meio à pandemia, tomou a decisão de acabar com a própria vida. Às vezes pessoas que imaginávamos nunca chegariam a tão trágica opção. Um médico, um professor, um padre, um pastor... Personalidades que sempre imaginamos fortes, conscientes, respeitosas da vida dos outros e da própria. Num gesto inexplicável e incompreensível decidem partir deste mundo que se tornou insuportável.

Alguns dos que desta maneira partem deixam uma mensagem de despedida. Outros partem sorrateiramente sem deixar qualquer vestígio. No primeiro caso, suas palavras são um chamado a ser escutado. No segundo, seu silêncio é um grito de dor a ser respeitado. Porque ninguém que parte desta maneira, parte sem dor. O suicídio é o ponto final de um longo e penoso processo de partidas interrompidas e nunca escutadas.

O suicídio é uma decisão individual. Mas ele revela um mal-estar social. Assim como não existe vida que nasça por si mesmo, toda morte carrega consigo um pedaço da vida dos outros. Cada suicídio é também um pouco de cada um de nós que morre. Em cada um que opta por partir, é denunciada a cultura tanatófila de nosso tempo que se tornou insensível à morte de milhões.

Vivemos uma explosão de mortes. É tamanha que ultrapassa tudo o que nossa geração já viveu. É preciso interrompê-la já. Mas é preciso estar também e desde já atentos às vidas que implodem por já não suportarem tanta dor. É preciso manter distância física para evitar o contágio viral. É indispensável aproximarmo-nos dos que estão à deriva e na ameaça de implosão e dar-lhes apoio emocional. A morte não é apenas o espetáculo morboso no jornal televisivo da noite. Há muitos morrendo silenciosamente para dentro. Para estes, não basta máscara, distanciamento e vacina. É preciso aproximação, carinho e compaixão.

Sobre o autor

Vanildo Luiz Zugno

Frade Menor Capuchinho na Província do Rio Grande do Sul. Graduado em Filosofia (UCPEL - Pelotas), Mestre (Université Catholique de Lyon) e Doutor em Teologia (Faculdades EST - São Leopoldo). Professor na ESTEF - Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (Porto Alegre)."

 

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