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A punição que serve para todas as religiões

Miguel Debiasi

Em tempo de pluralismo religioso a relação entre líderes e comunidades é algo muito exigente e tem apresentado todo tipo de problemas, conflitos e tensões. A consciência de pertença à comunidade ou Igreja cristã em muitas situações está relacionada a oferta de bens. Na falta de maior entendimento do que significa pertencer à comunidade cristã tem ocorrido muitos abusos contra os fiéis, líderes se aproveitam da ignorância alheia. Alguns abusos chegaram à questão da justiça, e esta, tem julgado em prol da reparação das vítimas.

O filósofo e historiador crítico francês Michel Foucault (1926-1984) tem debatido o tema do pastorado, da relação pastor-rebanho, para designar a relação do soberano com seus súditos. Essa questão da relação pastor-rebanho não é novidade da era contemporânea, no percurso da História da Salvação ela sempre marcou presença com suas tensões e conflitos. Na literatura bíblica as relações conflitivas entre pastor-rebanho, líderes e comunidade, autoridade e súditos, é algo percebível e incontroverso.

Na literatura egípcia faraônica, na literatura dos hebreus, na literatura assíria, a relação pastor-rebanho ou líderes e comunidade de súditos era de suma importância para prática da fé. No capítulo 34 da profecia de Ezequiel há um julgamento dos pastores negligentes do Povo de Israel (34,7-10). O profeta ao denunciar os pastores ou líderes pela sua ganância e crueldade praticada contra o povo de Israel, anuncia que Deus vai cumprir sua promessa dele mesmo apascentar seu rebanho (34,11-16). A relação de Deus com seu povo, livre dos péssimos pastores, restauraria a aliança de paz e de justiça (34, 25-31). Essa relação pastor e rebanho transcendia o campo religioso, havia muita importância para um bom modelo de líder político.

Para Michel Foucault esta ideia “pastor-rebanho” estaria presente na cultura da Antiga Grécia, para designar a relação do soberano ou do responsável político com seus súditos ou concidadãos. O filósofo apoia sua afirmação com base referencial em três termos. Primeiro com base em Homero (928-898 a.C.) a quem se atribui autoria de Ilíada e Odisseia, nestas obras tem-se uma referência que designam o rei como um pastor dos povos. O termo usado é poimén laôn, denominação que consiste em dirigir-se ao soberano e chamá-lo de pastor de povos.

A segunda referência explícita dessa relação está presente na tradição pitagórica e neopitagorismo, instituída após a morte do filósofo Pitágoras (582-497 a.C.), filósofo e matemático grego, onde textos são vastos. O elemento aceito pelos pitagóricos vem da etimologia tradicional que usa o termo nómos e nomeús, que significa pastor. O pastor é aquele que faz a lei, na medida que distribui o alimento, que dirige o rebanho, que indica a direção correta, que diz como as ovelhas devem se cruzar para ter uma boa progenitura. Ainda para os pitagóricos o magistrado é antes de mais nada o philánthropos, aquele que ama seus administrados, seus submetidos. Aquele que não é egoísta. O magistrado é antes de tudo cheio de zelo e de solicitude, tal como o pastor com suas ovelhas.

A terceira referência que Foucault faz está associada ao termo político, que aparece com muita frequência nos textos do jurista alemão Otto Friedrich Gruppe (1804-1876), como nos fragmentos de Arquitas, que explica a metáfora do pastor. A metáfora aplica o mesmo sentido de pastor dos gregos e hebreu, que teve grande influência na cultura oriental e ocidental. Aplica o termo “pastor” ao magistrado, figura e representante do modelo de bom pastor-magistrado, presente no vocabulário, jurídico, político e religioso.

Na literatura oriental e ocidental os empregos das palavras como “apascentar”, “pastor”, “pai” estão relacionados a figura do bom pastor e do magistrado, pessoas que devem zelar pelos seus súditos. Tanto no campo político como religioso e jurídico o “bom pastor” não é apenas ser bom, mas principalmente o verdadeiro, a liderança ideal. A liderança ideal como princípio geral de conduta, zela pela felicidade e bem-estar dos súditos, da comunidade.

Para os cristãos a única pessoa que exerce liderança exemplar é o Filho de Deus, Jesus de Nazaré que considera o que significa ser um bom pastor: “o bom pastor dá a sua vida pelas ovelhas” (João 10,11). Diante de um povo cansado, explorado e desorientado, Jesus não desconhece e ignora as necessidades dessa multidão, mas dá a sua vida em favor dos injustiçados pelas péssimas lideranças da comunidade, da cidade.

Na literatura bíblica o termo pastoreai (1Pedro 5,2-4) vem do grego episkopeo. O termo significa literalmente “considerar” que inclui a ideia de olhar cuidadosamente ou assistir diligentemente. Em sua obra Shepherds After My Heart – Pastores Segundo o Meu Coração, o professor de bíblia Timothy Laniak, o define como “uma atenção vigilante para ameaçar o que possa dispersar ou destruir o rebanho”. Na linguagem e cultura franciscana o pastor é um guardião de botas no chão, pronto para ser usado pelo verdadeiro pastor, Jesus de Nazaré, para guiar e proteger seu rebanho, o povo de Deus, a humanidade.

Em agosto de 2023 o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) julgou uma ação de uma professora da rede pública de São Paulo que, em apenas seis meses, doou todo o seu patrimônio à Igreja Universal do Reino de Deus, fundada por Edir Macedo. No texto da sentença conta: “as diversas campanhas de doação promovida pelos pastores aos crentes frequentadores da Igreja Universal, mesmo porque se estimula o despojamento total de seus bens em favor da organização religiosa”.

O Tribunal de Justiça determinou a devolução de 204 mil reais à fiel que havia entregue a Igreja Universal. A decisão demonstra “flagrante intolerância religiosa, vinculada ao discurso religioso da bem-aventurança”. Essa punição é exemplar para todos os líderes religiosos. É uma convocação para amar as ovelhas, o povo sofrido, empobrecido. Pois, pregar é uma coisa; amar aqueles para os quais pregamos é totalmente outra coisa. Um líder chamado por Deus e seguidor do verdadeiro Pastor, Jesus Cristo, precisa animar e liderar o rebanho como uma tarefa essencial do amor, de dar a vida pelo povo.

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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