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À cultura da violência propomos a cultura do cuidado

Leonardo Boff

O ódio e a raiva estão disseminados em nossa sociedade, toda ela  dilacerada. Quem nos governa não é bem um presidente mas uma família, cuja característica principal, utilizando as redes sociais, é a linguagem chula, os comportamentos grosseiros, a   difamação, a vontade de destruir biografias, a distorção consciente da realidade e a ironia e a satisfação sobre a desgraça do outro, como no caso da morte do pequeno Arthur, de sete anos,  neto do ex-Presidente Lula.       Após o carnaval, o próprio presidente postou no twitter material pornográfico escandalizante.

Os sentimentos mais perversos aninhados na alma de seguidores do atual presidente e de sua família, vieram à tona. Os críticos não são vistos com adversários mas como inimigos a quem cabe combater.

Os Bolsonaro violam a lei áurea, presente em todas as culturas e religiões: “não faças ao outro o que não queres que te façam a ti”. Como se vive, consoante o eminente jurista Rubens Casara, num Estado pós-democrático, pior ainda, num Estado sem lei, podemos entender  o fato de atropelar a Constituição, passar por cima das leis e por fim, anular  uma ética mínima que confere coesão a qualquer sociedade. Estamos a um passo de um Estado de terror.

Valem-nos as categorias do conhecido psicanalista inglês Donald Winnicott, um clássico no estudo das relações parentais dos primeiros anos da criança, para entender um pouco o que nos parece ser algo patológico. Segundo ele, a ausência de uma mãe bondosa e a presença de um pai autoritário marcariam em seus familiares, os comportamentos desviantes, violentos e a falta de percepção dos limites. Talvez esta base psicológica subjacente nos esclareceria um pouco sobre a  truculência dos filhos e o despudor do próprio presidente ao expor no twitter uma obscenidade sexual. Entretanto, um país não pode ser regido por portadores de semelhantes patologias que geram um generalizada insegurança social, além de reforçar uma cultura da violência, como atualmente.

À esta cultura da violência propomos a cultura do cuidado, um dos eixos estruturadores do citado psicólogo Winnicott. A categoria cuidado (care, concern) comparece como  um verdadeiro paradigma. Possui alta ancestralidade, contada pelo escravo Higino, bibliotecário de César Augusto,em sua fábula n. 220. Esse constitui também o núcleo central da obra maior de Martin Heidegger Ser e Tempo ($ 41 e 42). Em ambos, se afirma que o cuidado é da essência do ser humano. Sem o cuidado de todos os fatores que se combinaram entre si, jamais teria surgido o ser humano. O cuidado é tão essencial que se nossas mães não tivessem tido o infinito cuidado de nos acolher, não teríamos como deixar o berço e buscar o alimento necessário. Morreríamos esfaimados.

Bem escreveu outro psicanalista, este norte-americano, Rollo May:” Na atual confusão de episódios racionalistas e técnicos, perdemos de vista o ser humano. Devemos voltar humildemente ao simples cuidado. É o mito do cuidado, e somente ele que nos permite resistir ao cinismo e à apatia, doenças psicológica de nosso tempo (Eros e repressão,  Vozes 1982, p. 340).

 Tudo o que fazemos vem, pois, acompanhado de cuidado. Tudo o que amamos também cuidamos. Tudo o que cuidamos também amamos. O cuidado é tão essencial que é por todos compreendido porque todos o experimentam a cada momento, seja ao atravessar a rua ou ao dirigir o carro e seja com as palavras dirigidas à outra pessoa.

Dois sentidos básicos são expressos pelo cuidado. Primeiramente, significa uma relação amorosa, suave, amigável e protetora para com o nosso semelhante. Não é o punho cerrado da violência. É antes a mão estendida para uma aliança de viver e conviver humanamente.

Em segundo lugar, o cuidado é todo tipo de envolvimento com aqueles que nos são próximos e com a ordem e o futuro de nosso pais. Ele implica certa preocupação porque não controlamos o destino dos outros e do país. Quem tem cuidado não dorme, dizia o velho Vieira.

Finamente observou ainda  Winnicott, o ser humano é alguém que necessita de ser cuidado, acolhido, valorizado e amado. Simultaneamente é um ser que deseja cuidar como fica claro com nossas mães, ser aceito  e ser amado.

Esse cuidado uns pelos outros e de todos por tudo o que nos cerca, a natureza e nossa Casa Comum  refreia a violência, não permite a ação devastadora do ódio que ofende e mata  e é o fundamento de uma  paz duradoura.

A Carta da Terra, assumida pela ONU em 2003, nos oferece uma compreensão das mais verdadeiras da paz:”é aquela plenitude que resulta das relações corretas consigo mesmo, com outras pessoas, outras culturas, outras vidas, com a Terra e com o Todo maior do qual somos parte”(n.16,f).

No atual momento de nosso país, atravessado por ódios, palavras ofensivas e exclusões, o cuidado é imperativo. Contrariamente aprofundaremos a crise que nos está assolando e tolhendo  nosso horizonte de esperança.

Sobre o autor

Leonardo Boff

Nasceu em Concórdia, Santa Catarina, aos 14 de dezembro de 1938.  Doutorou-se em Teologia e Filosofia na Universidade de Munique-Alemanha, foi professor de Teologia Sistemática e Ecumênica em Petrópolis, no Instituto Teológico Franciscano. Professor de Teologia e Espiritualidade em vários centros de estudo e universidades no Brasil e no exterior, além de professor-visitante nas universidades de Lisboa (Portugal), Salamanca (Espanha), Harvard (EUA), Basel (Suíça) e Heidelberg (Alemanha). É autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Ecologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos.

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