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Pedagogia do erro no país que vive ao contrário

Gislaine Marins

Inicio o ano abordando um assunto arriscado, mas que levo muito a sério: o direito ao erro. O dever de tentaracertar.

Quem já frequentou as minhas aulas e me conhece um pouco sabe que considero os erros como um ponto essencial no processo de construção do conhecimento. Costumo pedir que os alunos me deem uma resposta errada para podermos refletir sobre os pontos a serem corrigidos. Para ensinar uma língua estrangeira, costumo sugerir o que denomino de “ditado de possibilidades”, a fim de que os estudantes adquiram familiaridade com homofonias e homonimias, adquirindo domínio sobre as línguas com as quais estão lidando. Inicio as aulas dizendo que os ótimos alunos não precisam de professor, já descobriram sozinhos a trilha do conhecimento. Aos melhores peço que me apresentem um erro quase perfeito, um daqueles que coloca à prova o seu professor. Explico que a própria ideia de acerto não existe sem a consciência dos erros que corremos o risco de cometer constantemente.

Os alunos, em geral, desconfiam da minha postura. Não estão acostumados a tratar os erros como parte do processo de aprendizagem. Acham que é uma armadilha, uma oportunidade para serem criticados e humilhados pelos erros cometidos. Timidamente levantam as questões controversas e somente quando se sentem seguros falam dos erros crassos, dos vícios de linguagem, das falhas em geral, dos quais é feita a nossa comunicação e a nossa vida.

Na escola, assim como na realidade fora dela, estamos prontos para aplaudir o que não existe: o sucesso sem derrotas, os avanços sem retrocessos, as vitórias sem esforços, as conclusões sem reflexão, as declarações sem bases, como se fosse possível construir qualquer coisa sem corrigir os cálculos e os percursos ao longo do caminho. Tratamos os contratempos como parênteses a serem ultrapassadas e, eventualmente, relegadas ao esquecimento, em vez de valorizar os mecanismos que a necessidade de correção desencadeiam para que os erros não se repitam.

Estudamos muito mal a literatura, a ideia de peripécias, de trama, de desfecho, de efeito das ações. Não há narrativa que não contenha uma gramática de erros e de superação, que poderia ser útil para compreender outras esferas da vida, que seria proveitosa para analisar a engrenagem da nossa comunicação e dos nossos atos. Podemos corrigir isso, podemos aprender com esse erro, com esse desprezo tão comum em um país de poucos leitores e poucas leituras.

Errar é necessário para aprender a conduzir os próprios passos. Ninguém descobre a trilha sem consumir as solas dos sapatos. Se eu descubro a arquitetura que leva a um erro, posso desmascarar quem tenta enganar. Se conheço a estrutura dos erros, posso cometer erros inéditos, corrigi-los e continuar aprendendo. Se acolho a inexorável condição de pessoa falível, sei o exato valor que cada acerto, de cada vitória e de cada tentativa para alcançar um resultado.

Hoje vivemos em um país que parece ter tomado o caminho contrário ao do tempo, onde a nossa vida foi virada pelo avesso e as nossas expectativas foram frustradas com  determinação aniquiladora. É um ótimo momento para adotar a pedagogia do erro. 

Para começar, é preciso avaliar cada decisão que tomamos como uma resolução potencialmente equivocada. Buscando todas as possíveis falhas, reduzimos as possibilidades de cometer um erro muito grande. É preciso não desistir de encontrar erros: a persistência irá reforçar a nossa capacidade de absorver as consequências, pois sabemos que um erro descoberto, cedo ou tarde, é melhor do que um erro ignorado. Por fim, é preciso recordar bem os erros cometidos e tentar cometer apenas erros novos. Isso evita perder tempo com o que já se tornou lição. Se tivermos de repetir, usemos a máxima paciência conosco, pois assim como os acertos, erros precisam de tempo para serem compreendidos.

A década que terminou deixa um rastro, um sulco profundo de erros dos quais temos de nos livrar. Não é uma situação fácil, mas lamento dizer: é o resultado nos nossos atos. Não se trata de culpa e de culpados, uma postura que não ajuda a resolver o que já está estragado, mas de mangas a arregaçar e de trabalho a fazer. Comecemos exatamente do ponto em que estamos: a nossa montanha de erros que, se soubermos superar, levarão a uma satisfação inédita, a uma alegria nova e, quem sabe, a um mundo melhor. É o que desejo que a gente possa construir na década que se inicia, um passo após o outro, pois erros não se desfazem em um dia, em uma noite ou em um ano. Trata-se de um trabalho longo, mas é uma construção que vale a pena ver realizada.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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