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É preciso superar as aberrações religiosas

Miguel Debiasi

Com a liberdade e a tolerância religiosa tem-se multiplicado as religiões no Brasil. Hoje, cada indivíduo pode escolher em qual espaço religioso pretende viver a sua fé. Na liberdade e tolerância religiosa, surgem os ruídos teológicos e morais. Escutam-se discursos religiosos que são totalmente contrários ao Evangelho. Num cenário religioso complexo como o brasileiro, é preciso discernimento e sabedoria para não macular a fé em Cristo.

Em fevereiro foram divulgados dados do Censo de 2022 que mostram que o país tem mais espaços religiosos do que estabelecimentos como escolas e hospitais. Há 580 mil locais de devoção a diferentes tipos de religião ante 264 mil instituições de ensino e 264 mil unidades de saúde, que totalizam 512 estabelecimentos. Os Estados que lideram a lista do ranking com mais estabelecimentos religiosos são o Amazonas, com medida de um templo para cada 68 domicílios, seguido na mesma proporção o Acre com 69 e o Amapá com cerca de 79.

Num comparativo populacional, a Região Norte lidera o ranking e a Região Sul – com os Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul – aparece com o menor número de estabelecimentos religiosos por 100 mil habitantes, com 226. Esta realidade religiosa do Brasil é visível ainda que alguns duvidem do Censo.

Na época em que o cristianismo católico era a religião majoritária no Brasil, os templos se destacavam especialmente a partir do centro das cidades. Em todas as regiões do Brasil, esses templos religiosos com torres, sinos e cruzes espalhados em todas as cidades, pequenas, médias e grandes são um marco religioso da população e um atributo cultural da nação brasileira.

As novas religiões estabelecem seus templos com a concepção da arquitetura que prevalecem características da construção civil. Salas de garagem, de lojas, de galpões, de fábricas, de cinemas, de shoppings tornam-se estabelecimentos religiosos. Qualquer espaço físico tem sido adaptado e usado pelos mais diferentes grupos para as atividades religiosas.

Nesse cenário religioso, além das igrejas de identidade católica e evangélica, as mais numerosas, somam-se às edificações como Testemunhas de Jeová, Mórmons, Centros Espíritas, Terreiros de Umbanda e de Candomblé, Templos Budistas, Sinagogas (judaicas), Mesquitas (islâmicas) e um número de grupos mais diversos estão espalhados por todo o Brasil.

O Censo 2022 mostra que em espaço de privação de liberdade como prisões e instituições socioeducativas, fazem-se presentes templos católicos e evangélicos. É comum, em diversas regiões do país, encontrar espaços católicos ou ecumênicos em aeroportos, rodoviárias, shopping centers, instituições militares, condomínios e entre outros.

Nessa complexa configuração religiosa, recorremos ao compositor, pianista, violonista, arranjador e cantor brasileiro Tom Jobim (1927-1994), que dizia “O Brasil não é para principiantes”. Em todas as classes sociais, seja na elite, ou entre os intelectuais, os políticos, as lideranças religiosas, é notória a ignorância sobre a questão religiosa, há preconceitos em relação à religião.

A quantidade de espaços de manifestações religiosas causou impactos entre os cientistas da religião. Os críticos afirmam que as pessoas são enganadas pela religião, quando deveriam, sim, ter acesso à educação, à saúde, ao trabalho, à cultura para superarem as crenças religiosas alienantes. Por outro lado, os milhares de espaços religiosos mostram que a população brasileira goza do direito à tolerância e à liberdade religiosa.

Há quem pense que a religião deveria desenvolver a sua função sociocultural fundamental na sociedade, seja pela sociabilidade, pertencimento, integração e pela segurança social. Em uma sociedade cada vez mais fragmentada, polarizada, individualista, preconceituosa e racista, a religião, seja pela acolhida da mensagem do Evangelho ou pela sua crença, deveria levar à libertação das pessoas dessa problemática social.

Num gritante cenário de desigualdade social e econômica, de insegurança social, de desemprego, de complexidade urbana, concluiu-se que as pessoas se tornam praticantes da religião na esperança da superação de tais dificuldades, buscando acolhida e um novo olhar para o futuro. Nessa perspectiva, lembramos do sociólogo, antropólogo e filósofo francês David Émile Durkheim (1858-1917), que afirma que toda religião é verdadeira. Essa não é uma afirmação teológica, mas sociológica, na medida que atende as demandas das pessoas.

O Censo de 2022 nos diz que é preciso estudar a religião como uma chave de entendimento da população brasileira. Esse estudo, com acuidade, poderá construir um diálogo entre religiões, doutrinas, teologias em prol da construção da cultura religiosa comprometida com a luta pelo bem-estar comum, pelos direitos, pela democracia, pela justiça social. Nessa terra de santa Cruz e de tantas outras crenças, espiritualidades, assim como de não crenças e de pessoas sem religião, as ciências humanas haverão de debruçar-se sobre esse fenômeno religioso, primeiro, para libertá-lo de tantos ruídos teológicos, morais, sociais e políticos que ele mesmo tem promovido.

Historicamente, no campo religioso, desenvolve-se o moralismo, o fundamentalismo e o doutrinalismo. No cenário religioso brasileiro, há discursos religiosos extremamente machistas, misóginos, preconceituosos, racistas, a ponto de justificar a dominação de gênero, étnica e social. Afirmações antirreligiosas desse tipo são corriqueiras. Lembremos do caso de um líder da Igreja do Reino dos Céus de Minas Gerais, afirmando que as mulheres devem fazer sexo com os maridos mesmo sem vontade, alegando que é Deus que as obriga e pede. Outro caso de um líder religioso que cometeu o crime de estupro alegando ser uma prática libertadora.

Poderíamos transcrever aqui inúmeros discursos religiosos proferidos por líderes de igrejas que são verdadeiras falácias, enganos. A realidade religiosa nos diz que é necessário avançar nas concepções religiosas. O perigo de interpretar e de propagar o Evangelho em benefício próprio é real, as religiões fazem isso com extrema facilidade e sem pudor religioso ou moral.

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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