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A classe operária na miséria

Miguel Debiasi

 

Muitas vezes se citou afirmação do papa Pio XI (1858-1939): “O maior escândalo do século XIX foi a apostasia da classe operária”. Obviamente que afirmação do papa clama por perguntas: Teria sido a classe operária do século XIX apostata? Os trabalhadores teriam renunciado a fé? Por qual razões a classe operária europeia do século XIX não se identificava com a postura da Igreja Católica? Talvez essa ‘descristianização’ pressupõe ter havido uma cristianização superficial? Acaso, as respostas estejam associadas ao projeto da burguesia europeia que submeteu os trabalhadores a novas situações e novos hábitos inconciliáveis com a vida cristã paroquial.

Segundo o historiador francês Peirre Pierrard, apostasia pressupõe adesão, fé anterior, algo que não aconteceu com a classe operária contemporânea. A classe operária nasceu da própria Revolução Francesa que iniciou em maio 1789 e terminou em novembro de 1799, a margem da Igreja. O proletariado é fruto do contexto materialista criado pela Revolução Francesa que gerou clima de guerra e de concorrência implacável na burguesia e nos Estados. A Revolução Francesa erigiu em dogma a liberdade de comércio e da não intervenção do Estado, dos sindicatos e de corpos intermediários. Esta estrutura industrial acabou em influenciar em muitos hábitos das pessoas, na organização das famílias e na prática da religião, banindo o tempo para o lazer, formação e que submeteu a população a novos ambientes sociais periféricos. Este ritmo industrial tornou-se incompatível com a vida cristã paroquial, gerando uma desafeição geral em relação a Igreja. Na realidade, os responsáveis pela ‘renúncia da fé’ não são os operários e sim, a própria burguesia.

Por conseguinte, as Revoluções - Francesas - Industrial dos séculos XVIII e XIX são as genitoras da classe operária por consequência de uma política econômica burguesa que compreende, por um lado, a concentração de renda e, por outro, a oferta de mão-de-obra barata. O mecanismo para viabilizar esta nova estrutura social é o salário mínimo, implantado na Europa no século XIX e que no Brasil entrou em vigor pelo Decreto-Lei nº 2162 de 1º de maio de 1940. Nesta estrutura social a classe burguesa desfruta do poder econômico que evolui pelo desenvolvimento industrial, comercial, tecnológico e automatização dos meios de produção. A outra parte da sociedade, a classe operária, em alguns setores como da produção, educação e serviços públicos, devido a situação de exploração dos trabalhadores houve uma organização sindical, instrumento de reação e de negociação de uma política salarial. Nessa nova estrutura sociológica gerada pelas revoluções há uma divisão, de um lado, ricos e de outro, os pobres ou classe operária. 

Esta sociedade organizada por classes sociais, a política do salário mínimo é uma discussão que nunca avança, levando a pobreza dos trabalhadores. Em contrapartida, na ausência de um debate da política salarial sob ótica dos últimos, acaba por considerar a desigualdade econômica um fenômeno sociológico natural de não apercepção que o Estado e a sociedade estão endêmicos. Para muitos teóricos a miséria e a pobreza são justificadas até mesmo pela doutrina religiosa com base em Jesus que disse: “pois sempre tereis pobres entre vós” (João 12,8). Tal justificativa distorce o sentido da afirmação, Jesus que não consentiu com a situação de pobreza, mas aponta para necessidade uma nova ordem social. Quando uma pessoa morre de fome ao lado de um outro que viveu na opulência é impossível sustentar tal análise sociológica como esta que “Deus quis assim e é preciso que haja pobres e ricos” (Lucas 19,19-31).

Esta é uma visão corrente no mundo quando se diz “o industrial paga o operário”, “rico patrão paga o pobre” ou “patrão paga o pobre”. O próprio vocabulário “industrial, rico, patrão” expressa que operário depende de outra pessoa, supostamente de alguém que lhe presta favores. Este vocabulário legitima uma estrutura social favorável aos senhores que acham que pagam e assistem ao pobre, enquanto não sabem que ficam com a mais valia do seu trabalho barato. A afirmação de Jesus “pobres sempre tereis” é uma denúncia das feridas, chagas físicas e morais de uma sociedade de classe que vive a indiferença social. Certamente, a transformação da sociedade e das estruturas injustas começa por um salário mínimo justo aos trabalhadores, a classe operária.

Segundo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) em julho o valor pago aos trabalhadores deveria ser de R$ 4.420,11. Por um lado, não havendo o compromisso dos cristãos por uma sociedade mais justa, acaba por validar a crítica de Marx e Nietzsche a religião que levou a “morte de Deus”. Marx e Nietzsche nunca desejaram a “morte de Deus”, mas da superação da religião que leva alienação da consciência humana e com isso deturpa o verdadeiro sentido do plano de Deus. Certamente, a consciência religiosa, social, política que é preciso olhar preferencialmente para os desfavorecidos e lutar por uma vida digna a todas as pessoas é honrar a presença e a ação de Deus neste mundo (Êxodo 3,7).

 

Sobre o autor

Miguel Debiasi

Frade da Província dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul. Mestre em Filosofia (Universidade do Vale dos Sinos – São Leopoldo/RS). Mestre em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do RS - PUC/RS). Doutor em Teologia (Faculdades EST – São Leopoldo/RS).

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