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Tudo, menos a música

Gislaine Marins

Só posso falar do que vi, do que li e do que lembro. Lembro que há muitos anos, no meu bairro em Porto Alegre, as pessoas desciam dos seus apartamentos com cadeiras de praia na mão, com chimarrão, violão e pandeiro: formavam uma roda para matear e para cantar. Li a “Súplica”, de Noémia Sousa, poeta moçambicana do século XX, que diz: “Tirem-nos tudo, mas deixem-nos a música!”. Vi um Brasil, com os olhos da subjetividade – que são os únicos que tenho –, capaz de cantar e de sorrir, apesar de tudo.

Não quero fazer um retrato pitoresco. Quero afirmar e defender que da subjetividade impregnada no nosso olhar ninguém escapa, dos seus enganos ninguém se livra, mas podemos e devemos conviver com a consciência de que a subjetividade é o que nos permite fugir à ilusão da objetividade.

Mencionei uma mulher, uma escritora africana. Citei a música e um episódio cotidiano: não neguei a subjetividade, de modo que tudo o que descrevo e recordo possa ser facilmente atacável e etiquetado como perspectiva pessoal e peculiar, cultura folclórica e menor, suficiente para distrair o tédio. Não é nada disso.

Se o particular é mero exemplo, também é único. Se a singularidade não pode ser generalizada, a nossa multiplicidade não pode ser homogeneizada. O olhar subjetivo serve para restituir as especificidades de cada lugar, de cada momento, de cada pessoa.

Nessa ótica, pessoas se encontrando, poetando, cantando, sendo, vivendo, não representam excepcionalidades ou excentricidades, mas parte da nossa pluralidade cultural. O Otelo de Shakespeare e o Orfeu da Conceição podem partilhar o mesmo espaço, se o nosso horizonte é capaz de ampliar-se sem condicionamentos estéticos. Não significa que tudo é igual: significa que tudo é diferente. A subjetividade serve para conservar a individualidade daquilo que tendemos a catalogar, usando apenas os padrões que conhecemos, reconhecemos ou preferimos adotar.

A música: um universo. Não há objetividade que dê conta da emoção que provoca, das recordações que evoca, da beleza que expressa. A música canta a terra que já não existe, os amores que se acabaram, o futuro que está por surgir: a surpresa, a tristeza, a solidão, a euforia, o desespero, a inveja, a solidariedade, as cores, os cheiros, a vida, o medo, a morte. Por isso, Noémia Sousa diz na sua “Súplica” que podem arrancar-lhes a terra, a luz, a casa, a lua. Podem desterrá-los, vendê-los, acorrentá-los: mas não lhes tirem a música.

A música embala os momentos mais importantes da vida: cantamos quando fazemos aniversário, cantamos nas celebrações solenes e há cantos fúnebres que nos acompanham na morte. A música não obedece a leis, não por ser revolucionária, mas porque é essencial. Por isso, é fácil concordar com Eduardo Galeano, quando escreve a “Janela sobre as proibições”: “Na parede de um botequim em Madri, um cartaz avisa: proibido cantar. Na parede do aeroporto do Rio de Janeiro, um aviso informa: é proibido brincar com os carrinhos porta-bagagem. Ou seja: ainda existe gente que canta, ainda existe gente que brinca”.

Há momentos em que até a vontade de cantar torna-se pesada, mas é preciso levantar a voz. Pelos que se foram, por nós e por aqueles que virão. Cantar não obedece a fronteiras, não tem tempo, não tem fim. Não propõe teorias: executa-se.

E para terminar essa série de lembranças, não poderia deixar de lembrar Rubem Braga e a sua crônica “Recado ao Sr. 903”. O autor, relatando que tinha realizado uma festa no seu apartamento e que o vizinho tinha reclamado, acata a queixa, mas observa que a nossa vida foi reduzida a números e que já não conhecemos as pessoas. Até mesmo os vizinhos são tratados pelo número de apartamento onde moram. Braga concorda com tudo: que é preciso respeitar o silêncio, as leis, o condomínio, mas conclui fazendo um apelo: “que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: ‘Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou.’ E o outro respondesse: ‘Entra, vizinho, e come do meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela’.”

Braga tinha razão. Sousa tinha razão. Galeano tinha razão. Têm razão todos os que cantando, sem pedir licença, esquecendo da dor e dos problemas, celebrando as alegrias, alongando a vida, preenchem o pouco tempo que temos nesse planeta, difundindo beleza e harmonias.

 

P.S. ao que sentiram a minha irregularidade ultimamente, peço desculpas. A vida nem sempre é regular como um relógio. Às vezes acelera, às vezes atrasa. Mas segue. E eu sigo também. Cantando. Observando, lendo e lembrando.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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